Crônicas de conteúdo histórico-cultural sobre artistas, personalidades, políticos e acontecimentos em Duque de Caxias, RJ, projeto concebido pelos jornalistas Alberto Marques e Josué Cardoso.

sábado, junho 10, 2006

CAMINHO DO PILAR

O PIONEIRO CAMINHO DO
OURO E SUAS VARIANTES
Guilherme Peres
A ocupação do vasto território hoje conhecido como Baixada Fluminense, cercado de charcos e pantanais, ainda no século XVI se renderia ao trabalho pioneiro dos desbravadores. Fixados em sesmarias e sobejos que se limitavam com rios e montanhas, além do pastoreio e a semeadura, a luta contra os gentios era atividade constante. Em fins desse primeiro século, engenhos de cana já fumegavam em território concedido a Cristóvão de Barros à margem do rio Magé, iniciando a ocupação de vales banhados pelos rios Meriti, Sarapuí, Iguaçu, Guandu, Inhomirim, Suruí, Iriri, Macacu e seus afluentes.
Aflorando aluviões de generosa fertilidade, transformaram seu solo em pastos verdejantes ondulados de canaviais, alimentando engenhos e engenhocas no labor diário da fabricação do açúcar, regado com o suor e o sangue do negro escravo. Aos poucos adentrariam florestas, mas se esbarrariam com a imensidão da serra do Mar. Sant’Ana, Órgãos e Estrela compunham o paredão indevassável que formava nesta região seu espinhaço frontal, assinalado nos mapas seiscentistas de “certão” e “ocupado por índios brabos”. Durante dois séculos a natureza hostil e montanhosa dessa serra fluminense manteve intransponível a barreira das comunicações do Rio de Janeiro com o Planalto. Porém, rompendo essa vastidão, Garcia Rodrigues, filho do bandeirante paulista Fernão Dias Paes, com seus índios e escravos, veio descortinar em 1704 no sítio do Couto, a visão magnífica de toda a baia de Guanabara e seu recôncavo, levando até Pilar o “Caminho do Ouro”. E Bernardo Soares de Proença, sesmeiro em Suruí, também rasgasse uma nova passagem, com o “Caminho do Inhomirim”, iniciado à margem desse rio transformado em porto, com uma capela sobranceira denominada de N. Sra. da Estrela dos Mares, subido a serra e seguindo antigas trilhas indígenas passando por Córrego Seco, atual Petrópolis, entregue ao trânsito em 1724. O mestre de Campo Estevão Pinto em 1728, descendo pela serra do Tinguá, abriu o início do “Caminho de Terra Firme” fugindo dos brejos e da navegação fluvial, deixando na passagem, um foco de próspera colonização graças a numerosas concessões de sesmarias, entre as quais a fazenda do Guandu, vizinho de Marapicu, pertencente a Pedro Dias Paes Leme o Marquês de São João Marcos, filho de Fernando Dias Paes Leme, descendente do famoso bandeirante paulista Fernão Dias Paes, que ali construiu em 1762 a capela de N. Sra. de Belém e do Menino Deus (Japeri) No mapa da Capitania do Rio de Janeiro, desenhado pelo Sargento-mor Manoel Vieyra Leão no ano de 1767 por ordem do Conde da Cunha, vemos que o caminho pioneiro de Garcia Rodrigues Paes partia da freguesia de Nossa Senhora do Pilar subindo o curso desse rio antes de galgar a serra do Couto. Do porto da Estrela à margem do rio Inhomirim, iniciava-se a primeira variante já referida.
O “Caminho de Terra Firme”, a segunda variante partia do Rio de Janeiro e, descrito por Antonil, indica o caminho terrestre por Irajá, engenho do Alcaide-mor Tomé Correia, Porto do Nóbrega no rio Iguaçu e sítio de Manoel do Couto, encontrando-se com o caminho de Garcia Paes.
Uma bifurcação tinha origem na freguesia de Jacutinga, conforme se vê no mapa corrigido da “Carta Geográfica da Capitania” do ano de 1801, oferecido a D. Antônio Roiz d’Aguiar, volvia para Noroeste buscando o pé da serra de Gericinó, passando pelo engenho Maxambomba (Nova Iguaçu), até atingir a roça de Pedro Dias, Freguesia da Sacra Família e, voltando para nordeste, alcançando a localidade de Pau Grande, no encontro com o caminho do Pilar.

O CAMINHO DE PARATI
Durante o início da mineração, no final do século XVII, ao partir do centro da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro, para se alcançar o caminho Velho das Minas, que começava em Parati, o viajante tinha duas opções: atravessar a baia de Sepetiba em direção a Parati e subir a trilha dos Guaianazes, transpondo a serra da Mantiqueira pela garganta do Embaú, ou alcançar a mesma baia em busca dessa trilha, pelo caminho de terra através da estrada Real de Santa Cruz, até o embarque na ilha da Pescaria à sua margem, pertencente aos padres da Companhia. Transferindo a sede administrativa do Rio de Janeiro para a região mineradora, segundo a carta régia de 1696 “para ficar mais próximo às minas”, o Governador Arthur de Sá e Menezes, percorreu esse caminho “longo, penoso e temerário”, mas até então o único existente.
“Depois do caminho pela serra do Facão à Vila de Parati” diz Monsenhor Pizarro, “foi primeiro o que Garcia Rodrigues abriu em direitura a serra dos Órgãos, por onde se fez o trânsito geral, até aparecer outro mais apto, desde o Rio Paraíba ao sítio ou roça do Alferes de Ordenanças, Leonardo Cardoso da Silva, daí a serra do Couto, e dela à de Tinguá, procurando a freguesia de Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu” (denominada nesse período de Nossa Senhora da Piedade do Caminho Velho) “por cuja estrada se chega à cidade, sem precisar de conduções marítimas”.
Essa facilidade proporcionou ao Rio de Janeiro, o principal papel de escoadouro do ouro e pedras preciosas, transformando-o no maior centro comercial da colônia, passando a atuar como representante da Coroa em suas atividades políticas e administrativas. A futura Estrada Real de Santa Cruz, que antes era o início do caminho terrestre para a baia de Sepetiba em busca de Parati, passou a ter uma importância secundária com a abertura do Caminho Novo “o que provocou a resistência dos paratienses, dos Jesuítas de Santa Cruz e de outros proprietários de terra interessados na manutenção do primeiro eixo”.
Dois caminhos contemporâneos destacaram-se no sistema de comunicação da região em estudo: a variante do Proença com término no Porto da Estrela, e o Caminho de Terra Firme, usado na segunda metade do século XVIII e início do XIX. Seu traçado foi determinado pela necessidade de fugir à zona pantanosa, que se encontrava nos vales dos rios que formavam a bacia hidrográfica da parte ocidental da baia de Guanabara.

O CAMINHO DE GARCIA PAES
Segundo documentos relativos ao bandeirismo paulista, publicado por Basílio de Magalhães, na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, volume XVIII, à pagina 464, que em carta ao Rei, datada de 24 de maio de 1698, Artur de Sá e Menezes expõe a necessidade “de uma estrada para as minas, a qual facilitasse as comunicações com o Rio de Janeiro a prol do aumento das lavras, da arrecadação dos quintos e até da criação do gado”.
Apresentou-se Amador Bueno, mas foram tantas as exigências, que seu projeto foi indeferido. Sabedor do contrato, Garcia Rodrigues Pais ofereceu-se “com zelo e desinteresse, contando que o Governador viesse ao Rio auxiliá-lo; ora, pela nova via de penetração, segundo o plano do filho do caçador de esmeraldas, em vez de três meses, tempo que então se gastava, se poriam apenas quinze dias entre a capital do sul e o longínquo interior do ouro”, finalizava Artur de Sá, indicando ao soberano a realização desse projeto “com o qual Garcia Paes faria grande serviço a V. Majestade, e a este povo grande sua obra”.
Iniciando essa empreitada, logo assim que o governo aceitou sua proposta em 1699, a abertura desse caminho consumiu 18 meses de trabalho “com alguns homens brancos e mais de quarenta negros (dos quais lhe morreram cinco) e fizera despesas consideráveis, saídas exclusivamente de seu próprio bolso”. Ao pedir auxílio aos moradores do Rio de Janeiro, que lhe haviam prometido, estes se recusaram, razão pelo qual o Governador ressarciu os prejuízos “do honesto e ativo paulista, lhe concedeu o privilégio, durante dois anos, poder trafegar gêneros de negócio pela estrada que abrira devendo, porém, leva-la a cabo a sua custa”.
O ponto de partida da estrada era a Borda do Campo, perto da atual Barbacena, “então conhecida como arraial dos Carijós”. Em 1700 o Governador era informado pelo Capitão-mor Pedro Taques, que a picada atingira a região de Ressaca onde começavam os Campos Gerais, exigindo “enormes cabedais, tendo que recorrer a bolsa de seu cunhado Domingos da Fonseca Leme, e obtivera escravos deste, que quisera a Sua Majestade fazer grande serviço”.
Como recompensa, Garcia Paes recebeu duas sesmarias nas margens do rio Paraíba e do rio Paraibuna, estabelecendo passagens com balsas e canoas à frete, além de obter o privilégio da utilização do caminho que abrisse, salvo para aqueles que transitassem “sem levar gêneros de espécie alguma, escravos ou índios, excetuando-se os carregadores de patrona”, (maleta de couro usada pelos soldados para carregar cartuchos
No território fluminense, “o novo caminho das Minas, que descia das margens do Paraíba pela Roça do Alferes, prosseguia pela serra do Couto ate atingir o arraial do Pilar, às margens do Iguaçu”
Exigindo novas informações sobre “a difícil diligência” efetuada por Garcia Paes, o soberano propôs a ida de Artur de Sá e Menezes às minas, aproveitando a jornada para examinar as trilhas abertas em função da abertura do Caminho Novo.
Em seu “Estudos e Depoimentos”, Daniel de Carvalho observa que nos tempos do Conde de Assumar só existam dois caminhos “legais” para as minas partindo do Rio de Janeiro “com ranchos para tropas, canoas ou balsas para travessia dos rios, pousos para viandantes e postos de guardas para fiscalização dos tributos e para segurança das pessoas e bens. As demais picadas existentes seriam caminhos ou veredas clandestinas para a entrada ou saída de quilombolas ou de pessoas sem passaporte e para o contrabando de ouro e de mercadorias”.
A proibição da abertura de novas picadas e a obrigação do transporte do ouro pelo caminho de Garcia Paes, foi uma exigência da “Lei de 10 de março de 1720, impondo penas severas” aos infratores.
“Amador Bueno da Veiga” segundo Affonso Taunay, “considerando que o caminho aberto por Garcia Paes era um tanto impróprio ao trânsito de cavalgaduras e tropas de gados, pelas extensas florestas atravessadas sem recursos de pastagens, propôs abrir nova estrada mais conveniente”. Um certo Félix de Gusmão propôs ao Governador abrir um novo caminho, porém esse, pelo contrário, “proibiu a abertura de novas picadas”.
Com o aumento do transito essa estrada tornou-se imprópria, até que um morador em São Nicolau do Suruí, Bernardo Soares de Proença, sesmeiro nas encostas da serra do Frade e Tocaia Grande, próximo à Córrego Sêco (Petrópolis), propôs abrir um caminho por essa garganta, “sem ônus para o erário real”, sendo sua projeto autorizado.
Ligando o porto da Estrela na margem do rio Inhomirim, ao vale do Paraíba, foi entregue ao trânsito em 1724, sendo aplicados nessa empresa “mais de cem mil cruzados, perdendo o seu autor, além de seus haveres, muitos escravos e índios de sua propriedade”.

A INVASÃO FRANCESA NO RIO DE JANEIRO
Naquela manhã de sábado, dia 12 de setembro de 1711, uma forte serração cobria o Rio de Janeiro. Às 5:30 da manhã “orientamos o pano a fim de aterrarmos diante da baia do Rio de Janeiro”, diz em seu diário o guarda-marinha francês Du Plessis-Parseau, tripulante do “Lys”, navio capitânia que conduzia Du Guay-Trouin.
Em seu raro livro divulgado na França logo após a volta da esquadra, traduzido e publicado no Brasil em 1942 com o título de “Expedição Francesa Contra o Rio de Janeiro”, Du Plessis conta para a gloria da França, aqueles cinqüenta dias de horror, saques e mortes, que marcaram para o Brasil, um dos momentos mais humilhantes de sua história.
“Soprando vento fresco de E, e persistindo o nevoeiro, o que nos era favorável, pois que só poderíamos ser descobertos de terra quando estivéssemos muito perto, o que efetivamente aconteceu”.
Alguns escravos que pescavam a bordo de pequenos barcos próximo à entrada da barra, estranharam grandes silhuetas brancas que deslizavam em silencio adentrando a baia de Guanabara. “O Magnanime” estava na vanguarda a fim de determinar o rumo, pois seu comandante já conhecia o Rio de Janeiro. Em sua esteira vinha o “Brillant”, seguido pelo “Aquille”, “Lys”, “Fidele”, “Mars” e “Glorieux”; vinha depois o “Bellone” e as demais fragatas, segundo sua importância e hierarquia, “cada um em seu posto, pronto a combater”. Era uma hora da tarde.
Avistados pelas fortalezas abriu-se fogo de ambos os lados durante meia hora, tempo suficiente ante a fraqueza do defensor, para entrarem na barra 17 navios de guerra franceses, com 700 canhões, dez morteiros e transportando cerca de 6 mil homens, fazendo saltar o depósito de pólvora da ilha de Villegaignon “com o que morreram mais de 30 pessoas e muitos feridos”
O “Magnanime” liderando o comboio foi o primeiro a ser “saudado” pela fortaleza de Santa Cruz, “situado à direita da entrada e da qual era forçoso passar à queima roupa. A fortaleza dispunha de 44 canhões de todos os calibres, desde 48 libras de peso de projétil até aos de 8 libras; e cedo começou a nos fazer sentir a sua artilharia, sem respeitar o pavilhão inglês que tínhamos içado”.
O recuo de 4 naus de guerra portuguesas que estavam entre essa ilha e a cidade “por não poderem, pela brevidade do tempo ou pelas razões que davam os cabos que a governavam”, dar combate aquela poderosa esquadra sua pouca tripulação desembarcando e largando as amarras, os navios foram encalhados e incendiados “na ponta da Misericórdia, na ilha das Cobras e junto a São Bento...coisa incrível para quem conhece a barra do Rio de Janeiro”, diria mais tarde o Governador Francisco de Castro Morais em carta ao Governador-Geral do Brasil, D. Lourenço de Almada, depois da rendição do Rio de Janeiro.
“Todos esses obstáculos, porem não conseguiram perturbar a bela ordem que foi observada por toda a esquadra, que fez uma entrada digna da audácia e do orgulho francês e fundeou, toda ela às 4 horas da tarde, no interior da baia, fora do alcance dos canhões da defesa, sem ter sofrido muito em seu arvoredo e com perda apenas de um único oficial, M.Laminille, sub-brigadeiro dos Guardas da Marinhas e poucas praças mortas e feridas”.
Aqui vemos que o guarda-marinha francês, num arroubo patriótico, exagera quanto as defesas da cidade que estavam praticamente desguarnecidas. Avisado por um emissário que viera de Cabo Frio no dia 5 de agosto, o Governador Francisco de Morais preparou a defesa da cidade. “Guarneceram-se as fortalezas, que seguram o porto e animando-se os soldados uns aos outros”, mas, diz Monsenhor Pizarro, “como, porém corressem cinco dias, e se não divisasse ao largo alguma vela, isto bastou para que reputado falso o aviso, se expedissem novas ordens, e retirando-se a guarnição dos fortes, se voltasse tudo antigo ócio, como se não tivesse passado algum risco, nem dele houvesse algum receio”.
Ao serem surpreendidos com a invasão, diz Pizarro com evidente revolta, “a maior confusão imediatamente se sucedeu a tão indiscreta segurança... tanto lhe era facílimo conseguir por um fogo bem dirigido; aliás, era igualmente do seu dever, dispondo em tempo conveniente as tropas de terra, impedir o desembarque. Nada menos se fez; perplexo ambos os chefes e perdido de todo o ânimo, nenhum atinou com o meio da defesa, senão é que Gaspar da Costa, mandando fora de ocasião incendiar as naus, e Francisco de Castro, fazendo encravar a artilharia da Fortaleza da Ilha das Cobras que desamparou, ou quiseram facilitar o passo do inimigo, ou impor ao mundo, em ar de oficiais hábeis, que souberam tirar partido da desgraça, tornando menos grata ao inimigo a vitória, que não souberam estorvar-lhe...tudo pois favoreceu a entrada: um espesso nevoeiro que forrava o céu, vento, maré, e nenhuma resistência”.

UM PEDIDO DE SOCORRO
Um emissário enviado pelo governador Francisco de Castro no dia 13 de setembro de 1711, com pedido de socorro e uma ordem expressa para a troca de cavalos durante o trajeto pelo Caminho Novo, chegou as mãos do Governador das Minas, Antonio de Albuquerque, no dia 21 do mesmo mês. Alvoroçaram-se os povoados que se formavam a margem de córregos e rios à cata do precioso minério. Mobilizou-se em poucos dias uma multidão de garimpeiros dispostos a descerem as montanhas e expulsar o invasor. Sob as ordens do governador angariou-se recursos para a longa travessia de rios e florestas, e “obteve donativos no valor de 20 contos de réis com que preparou os terços que marcharam”.
“Podemos avaliar” diz Augusto Tasso Fragoso, as dificuldades do Governador “em dar feição militar a essa massa coletiva cuja coesão assentava unicamente no patriotismo e na confiança do chefe que a conduzia”. A reunião de cerca de 6000 homens “da mais luzida gente”, (disse Albuquerque mais tarde em ofício enviado ao rei) de um momento para outro, sem o recurso de roupas, calçados, montarias, armas e treinamento para, numa caminhada de 17 dias ir dar combate a um inimigo invasor altamente experiente nas guerras de conquistas, foi em nossa modesta opinião, um dos episódios mais gloriosos da História do Brasil.
De Ribeirão do Carmo apresentou-se Pedro Frazão de Brito à frente de 200 homens “armados e pagos por ele”. Assim como “Torquato Teixeira de Carvalho, Rodrigo Bicudo Chassim, Domingos Fernandes Pinto e outros, uns com 30, outros com 50 e 100 homens”, todos armados e sustentados a custa de cada líder. De Vila Rica marcharam em direção a Vila Real do Sabará, na encruzilhada das Congonhas, onde ali esperavam o general “cerca de duzentos homens armados e sustentados” por várias lideranças. Curiosamente vamos encontrar durante a descrição da caminhada das tropas de Albuquerque feita por Diogo de Vasconcelos, com sua chegada à Registro, o nome do coronel Domingos Rodrigues da Fonseca Leme, que os esperava em sua fazenda, o mesmo que ajudou o cunhado Garcia Paes, “com escravos e cabedais”, a concluir a abertura do Caminho Novo do Pilar. “Fornecendo o gado necessário a jornada” este se pôs à frente “marchando com 200 homens”.
Não podendo esperar outras tropas que partiram de regiões distantes, o general deixou aviso que o seguisse pelo mesmo caminho “que não oferecia desvios”. A estação chuvosa deixava a estrada enlameada. Cascos de animais, botas e pés descalços marcavam a passagem daqueles homens rudes, reunidos pelo sentimento nativista. A travessia dos rios era demorada, não havia canoas suficientes e o número de embarcados limitados, pelos riscos das corredeiras durante as cheias. A viagem foi feita pelo chamado “Caminho Novo”, ou “Caminho do Pilar” recentemente aberto por Garcia Paes, “cercado de matas virgens” e entregue ao trânsito em 1704, com raras habitações e poucos recursos à sua margem. Não havia animais para todos, a maioria se deslocou a pé. Em 12 dias de marcha, chegaram e acamparam os primeiros pelotões para descansarem, a espera dos demais “nos pousos que chamam frios”. Diz Antonil: “No dito cume faz um tabuleiro direito em que se pode formar um grande batalhão, e em dia claro é sítio bem formoso, e se descobre dele o Rio de Janeiro e inteiramente todo o seu recôncavo”.
Constituindo o até então paredão indevassável da serra do Mar em direção a Baixada Fluminense, esse caminho tinha como referência o pico do Couto. Com 630 metros de altura destaca-se entre os picos do Tinguá e a da Estrela, dando passagem no pé dessa montanha através do desfiladeiro que rompia a sesmaria pertencente a Manoel do Couto, descendo paralelo ao rio Pilar. Naquele momento o general Albuquerque recebeu a dolorosa notícia que decepcionou a todos: a cidade seqüestrada tinha cedido as exigências do inimigo. Imaginamos o desânimo que se abateu sobre aquela gente guerreira e disposta cobrar com sangue, o despertar de um dos primeiros sentimentos patrióticos do povo brasileiro.
“Estalava-lhes o coração nos peitos, e mal podia persuadir-se do que viam” diz monsenhor Pizarro “muito menos que bastasse a obra de dezoito dias a vencer tantas dificuldades. Tudo lhes parecia sonho, e nesses momentos de tristeza, representou-se-lhes a cidade mais bela, do que fora e seus contornos mais agradáveis do que tinham sido, dando infinito valor à perda”.
Desceram a serra esperançosos na suspensão do pagamento do resgate, e se iniciarem os combates para o qual aqueles homens estavam preparados. Passando pelo arraial do Pilar, que ainda era um pequeno aglomerado de casas de estuque aninhados em torno do porto e próximo a construção de uma nova Igreja dedicada a N. Sra. do Pilar “de pedra e cal” erguida pelos fiéis, o general com sua tropa dirigiu-se a sede da fazenda de São Bento dos padres Beneditinos para se aquartelar. Entretanto as negociações já estavam adiantadas. Sabedor da aproximação do governador das minas com suas tropas, Duguay-Trouin facilitou o acordo apressando o recebimento do resgate. “Depois disso ajustado e as capitulações feitas, chegou ao Aguassú o senhor Antônio de Albuquerque, que desceu das Minas como socorro de nove mil homens (sic), em que entravam quatro tropas de oitenta cavalos”, narrou Manoel de Vasconcelos Velho “em carta particular” a Domingos José da Silveira, residente em Lisboa, e transcrita por Monsenhor Pizarro em suas Memórias Históricas do Rio de Janeiro.
“E quando pudera servir isto de grande bem, serviu mais de despertar o sentimento de todos; porque chegou a tempo em que o saque já estava embarcado, o estrago feito e a saída da barra franca, por terem as fortalezas por si, e mais bem guarnecidas, do que as acharam: por onde lhe não ficou nada a fazer. Também na tardança desse socorro, culpam a Francisco de Castro, por que dizem não remetera logo ao senhor Antônio de Albuquerque a carta por onde El Rei o mandava descer a baixo, e tomar o Governo”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ANTONIL, André João – “Cultura e Opulência do Brasil”, 3ª - Ed. Itatiaia 1982
PIZARRO E ARAUJO, José de Souza Azevedo – “Memórias Históricas do Rio de Janeiro”, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1945.
FORTE, Mattoso Maia – “Memória da Fundação de Iguassú”, Rio de Janeiro, Tip. Jornal do Comércio, 1933.
PERES, Guilherme – “Baixada Fluminense, os Caminhos do Ouro”, Rio de Janeiro, Gráfica Register, 1993.
LAMEGO, Alberto Ribeiro – “O Homem e a Guanabara”, Rio de Janeiro, IBGE, 1948.
PRADO JUNIOR, Caio – “Formação do Brasil Contemporâneo”, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1977
CARVALHO, Daniel de – “Estudos e Depoimentos” – José Olímpio Editora RJ. 1953
BOXER, C. R. – “A Idade de Ouro do Brasil” – Cia. Editora Nacional, SP 1969
PARSEAU, Du Plessis – “Expedição Francesa Contra o Rio de Janeiro em 1711” –Imprensa Nacional, RJ 1942
FRAGOSO, Augusto Tasso “Os Franceses no Rio de Janeiro” – Biblioteca do Exército – RJ 1965
VASCONCELOS, Diogo de – “História Antiga das Minas Gerais” – INL RJ 1948

quinta-feira, maio 11, 2006


Memórias de um ex-escravo reprodutor em Magé

João Antônio Guaraciaba nasceu no dia 20 de setembro de 1850. Preto, alto, forte, viveu grande parte de sua vida em Magé, Estado do Rio de Janeiro, onde morreu velho, enrugado e de carapinha branca com seus bem vividos 126 anos. Gostava de andar, mas seus passos ficaram lentos denunciando o peso da idade, o reumatismo e as “oito picadas de cobras que levou na perna direita, de tanto viver nos matos”, apesar de “lúcido e ainda enxergando bem para longe e sem sofrer de surdez”. Filho de mãe angolana que o teve aos quinze anos, e o Barão de Guaraciaba “um mestiço fazendeiro comprador de escravos negros na África onde conheceu sua mãe Angelina, então negra forte e bonita”. Depois de engravidá-la, prometeu buscá-los em outra viagem, trazendo-os assim para o Brasil num veleiro negreiro. João tinha apenas quatro anos de idade. Registrado em Magé, onde “tirou certidão com testemunha e tudo”, como filho do barão e Angelina Maria Rita da Conceição (nome cristão), “por que naquele tempo não tinha disso não, a data do nascimento passava de boca em boca, de parente para parente”.
Quando foi para Mauá, então Guia de Pacobaíba freguesia de Magé, João tinha 17 anos, levado pela mão de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá “para tirar (procriar) raça de crioulo escravo para o Imperador, que conheceu aquele preto forte na fazenda do Barão de Guaraciaba, onde passou uns tempos e pensou até que ele era escravo. Chegou a querer comprá-lo, mas o pai disse que não vendia, por que João era seu filho”. Ao chegar a Pacobaíba, na barca do Barão de Mauá aquele negro de “mãos de dedos longos, braços fortes, capaz de segurar com força as mulatas e crioulas da fazenda”, viu pela primeira vez “o trem vomitando fogo e fumaça” e apesar de não ter sido escravo, “trabalhou no porto onde os barcos veleiros atracavam”. Viu diversas vezes o Imperador desembarcar no cais de Pacobaíba e pegar o trem para Raiz da Serra onde embarcava na charrete até Petrópolis. “Era um homem sempre com o rosto limpo e bem tratado”. Ficou em Pacobaíba fazendo alguns serviços para o Barão até “despois que apanhei idade é que fui escolhido para tirar raça. Na minha fazenda só tinha eu de reprodutor”. Segundo suas próprias palavras, ele só foi levado para as fazendas de Petrópolis e Correias com 23 anos de idade quando assumiu sua nova “obrigação”.
Guaraciaba afirmou que deixou mais de 300 filhos: 100 para D. Pedro II e 200 para o Barão de Mauá, fora os que teve com as mulheres da fazenda de seu pai em Campos, ainda adolescente. “Ficou nessa vida de reprodutor deitando com duas, três, quatro mulheres por dia nas senzalas em que o Barão e o Imperador mandavam até os 38 anos, quando a Princesa Izabel aboliu a escravidão” A história registra que quando João nasceu em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz confirmava a Lei de 1831extinguindo o tráfego de escravos, punindo com penas severas os infratores. Seguiu-se a Lei dos sexagenários de 1855. A Lei de 1869 libertando os servos que fossem para a guerra do Paraguai. A Lei do Ventre Livre de 1871, e finalmente a Lei da Abolição de 1888. João se lembrava que depois que surgiu a Lei do Ventre Livre, todos continuaram escravos, “agregados às fazendas sem outro ganho que não a casa e comida simples”. Foi escolhido para ser reprodutor por que “era preto de Angola”. Os senhores queriam pessoas bem fortes para esse serviço. “Se nhô quer saber: nas fazendas que eu ficava aquelas que não panhavam prenhez comigo eram vendidas para outros fazendeiros. Os donos tinham muito interesse em mulher que reproduzisse, pra ter mão-de-obra barata, pra trabalhar a cana, o café e a mandioca”.
Achava a “atividade” legal por que “era premitido”. Ele gozava de regalias que o resto da negrada não tinha. “Jamais entrou no chicote, nem foi açoitado no tronco ou acorrentado. Nunca levou bolo de palmatória ou teve pés e mãos amarradas no instrumento de tortura chamado “vira mundo”, onde muito escravo morreu. Às vezes morriam com gangrena, de tanto esfregarem os braços nas correntes para se soltarem cortando a carne que infeccionava”. Com ele foi diferente, embora trabalhasse com os escravos do Imperador, ajudando na lavoura quando podia, tanto que era aposentado pelo Funrural e recebia mensalmente por um banco de Magé Cr$ 300,00. “É muito pouco” dizia ele “não dá pra viver não. Se não fosse os amigos não sei o que seria”. João também lembrava das canções cantadas no eito pelos escravos. Trocando branco por baranco ou furta por fruta, cantava o “Lundu do Pai João” que falava de justiça: “Baranco dize: preto fruta / preto fruta com razão; / Sinhô baranco quando fruta / quando panha casião; ./ O preto fruta farinha / fruta saco de feijão; / Sinhô branco quando fruta / fruta prata e patacão; / Nego preto quando fruta / vai pará na correção. / Sinhô baranco quando fruta / logo sai sinhô barão”.Ele era o único na fazenda que não pagava no pesado. Boa alimentação e descanso, quando nas senzalas as escravas já o esperavam. “Era uma de cada vez na cama”. João sorri mostrando seus dois únicos dentes amarelos. “De vinte que entravam, quinze pegavam filho”. Quando seu pai o entregou ao Imperador, sabia que ele iria ser “cobridor de mucamas”.
Sua descendência se espalha pela Baixada e na Serra, incluindo parentes do Barão de Guaraciaba, “mas quase não vejo”. Antigamente subia a serra até Petrópolis de trem, mas desde que o Presidente Castelo Branco extinguiu a ferrovia Mauá-Petrópolis por ser antieconômico, raramente ia de ônibus.
“Companheiro do Aleixo, no mundo acho no mundo deixo” dizia ele repetindo um ditado popular de seu tempo. Mesmo numa época em que a Igreja vigiava o comportamento sexual das pessoas, muita negra teve filho de senhores e muita senhora amaldiçoou seu marido. Gostou de algumas escravas, mas como lembrar do “jeito” delas se o tempo passou. Muitas já morreram. O que sabe é que tem filhos espalhados “pela aí” de setenta, oitenta anos e que seus traços estão no olhar e no requebro de alguma mulata de hoje, nos ombros largos e nariz afilado de algum crioulo descendente afastado de alguns de seus trezentos filhos. Naquele tempo, não bebia nem fumava “pra não estragar o corpo”. Gostava de festas: São João, São Pedro, Santo Antônio, São Jorge, São Marcos, e São Sebastião. Gostava de ver capoeiras darem os botes. Cantava e pulava até de Madrugada. Gelados nem pensar, tiram a potência do homem. “Esses gelados pareceu depois da Abolição, não servem pra nada. Só pegou no Brasil por que faz muito calor e o pessoal gosta de refrescar, mas eu conselho a juventude evitar gelados, sorvetes”.
Negro João fica meditando quando é indagado sobre quilombos. Fala sobre o da Vila de Marcos da Costa e o da serra de Santa Catarina, perto de Petrópolis.
E os capitães do mato iam lá ?
- Iam o que sinhô, então eles eram bestas? Eles se escondiam em barrancos, faziam emboscadas para as tropas, espalhavam armadilhas onde elas caiam.
O preto velho que comandava o quilombo Marcos da Costa, mesmo doente de cama dava ordens: “vai catar o milho, vai cuidar dos porcos. Eles tinham de tudo, campos de gado, plantação de milho”. João conheceu muito crioulo que fugiu para esse quilombo “onde tinha um santo que veio da África e era o padroeiro do lugar, foi trazido pela fazendeira D. Inês, da Fazenda da Glória”. Cansados de verem tanta “malvadeza dos brancos” com seus irmãos de cor, a ponto de preferirem suicidar-se a continuarem escravos, a fuga era uma forma de se libertarem. Em Pacobaíba viu chegar muitos negros e muita negra mina natural de Angola. Uns destinados às fazendas, outros eram anunciados no “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro pelos agentes de escravos para serem vendidos em praça pública. Esse jornal publicava desde 1827 todo o movimento de navios com saída e chegada no porto. Compra, venda, aluguel e fuga de escravos, aconselhando que chamassem a polícia para capturá-lo e oferecendo recompensas a quem o levasse ao seu dono. João afirmava que escutou muita história de negros jogados no mar durante a travessia da África para o Brasil, “pelos comandantes que não queriam ser apanhados em flagrante fazendo tráfico de escravos. Abriam o porão e pronto, todos os escravos morriam afogados ou eram comidos pelos tubarões”.
Os velhos falavam que era assim, coisa de gente muito ruim
“Diz o preto reprodutor que nunca leu jornal, nem no Império nem agora, pois é analfabeto”
“Guaraciaba ainda se lembra que a fazenda de Pedro II era ali em Mauá, perto do lugar conhecido por Ipiranga dos Remédios. Naquele tempo era católico, mas gostava de macumba. Hoje é Batista, vai aos cultos sábados e domingos”.
Faz algum tempo, trabalhava no transporte de bananas com uma carroça e uma égua de sua propriedade, depois, passou a emprestar o animal ao compadre carroceiro para continuar o serviço, “por culpa de um reumatismo, principalmente no inverno, quando as dores aumentam”. Sobre os “feitores de escravos”, nem gostava de relembrar. Falava sobre a maldade e tortura contra os negros, crianças, mulheres e homens, amarrados no tronco e açoitados. Outros feridos a bala pelos senhores que experimentavam armas ou exercitavam a pontaria.
- O pior fazendeiro que conheci foi Antônio Nicolino, um homão de quase três metros de altura que comprava 100 escravos de três em três anos. Com três anos de trabalho a negrada estava arrebentada de tanta surra. Aí ele mandava comprar aguarrás, fazia uma fogueira e matava aqueles mais fracos.
- Eles pagavam os réis (impostos), e eram donos dos negros. Mas Deus é justo e Nicolino morreu pobrezinho e ninguém chorou (aí Guaraciaba fala sorrindo) por que todo mundo odiava ele.
Nesse tempo João era rapazinho e esses crimes foram testemunhados na Fazenda do Morro Seco, em Vassouras, propriedade de Nicolino.
- Tinha escravo que também era capataz e se juntava com os brancos para bater nos pretos, cercavam a negrada na mata e mandavam bala. Nhô não sabe, mais tinha fazendeiro que se desconfiasse que algum escravo roubou, matava, que era pru mode de não panhar costume.
O velho Guaraciaba está cansado de falar e pára para tomar o café, servido na casa dos compadres onde concedeu essa entrevista. Bebe de um só gole e estala a língua. Perguntado se nunca teve mulheres firmes com quem viveu, diz que sim, a Maria Olina, a Maria Madalena e a Olícia Maria do Carmo, esta com quem, teve uma filha agora com 33 anos, Laura, que mora em Nova Iguaçu, casada com um comerciante português.
“Os moradores de Mauá sabem de sua última mulher, Maria Olícia, que ele diz ser a mãe de Laura, morreu há três anos, com 50 anos. Aí o velho ficou mesmo só, dando suas caminhadas, mas ainda com vontade de caçar negas por aí”.
Acordava de manhãzinha com o cantar dos galos e dormia às oito da noite. Só sabia das horas orientando pelo sol. Não tinha relógio. Perguntado se gostaria de conhecer Angola, país onde nasceu, disse que “gostaria, mas só se fosse de navio”, pois “acho bonito o mar”. São quatro horas da tarde e o velho Guaraciaba quer ir embora pra casa, “hoje não foi almoçar com seus outros companheiros crentes, comeu arroz, feijão e peixe aqui mesmo na casa do compadre Jorge Carroceiro. Quer ir descansar”. Aceita uma carona. Está chovendo e a tarde vai antecipando a noite. Indica a estreita estrada de barro rasgada no mato, que João conhece bem, levando a um pequeno barraco de estuque com quintalzinho nos fundos, onde uma bananeira ao lado da porta tomba com o peso do cacho. Ao saltar do carro gemeu, ao botar a perna direita das oito picadas de cobras e pisar no chão com lama que agarra nos sapatos. Casebre acolhedor, mas que ele desejava melhor, pois nem porta firme tem, embora não se preocupe com ladrões, não há ali nada para roubar.
“Ficaram de me dar uma casa, mas acho que estão esperando eu morrer, diz brincando com um sorriso, pitando seu cachimbo de barro deixando um cheiro de fumo no ar. Na sua pureza ainda acredita em almas do outro mundo, rezando muito para elas não aparecerem em sua vida, principalmente quando vai a Piabetá a pé, sozinho pela estrada, chegando lá ao anoitecer”.
Dentro do barraco somente uma velha cama com colchão de palha forrada com trapos e algumas panelas sobre um armário. Seus bens mais preciosos cabiam dentro de uma lata vazia de leite em pó. Ali eram guardados a certidão de nascimento e um folheto evangélico, nada mais. “Quando quiser escrever uma carta (e pretende pedir uma casa ao Governo), recorrerá à dona Maria e ao seu Miguel, os compadres crentes”.
- O senhor sabe o nome atual do Presidente da República?
- Não sinhô.
- Quais o que o senhor se lembra?
- O Hermes da Fonseca, o Floriano Peixoto.
“Para ele o mundo era ali. O radio da vizinha irradia ao longe o jogo Fluminense e Olaria transmitido do Maracanã. Um avião quadrimotor passa baixo em direção ao Galeão. Vem de longe também música no rádio, ouvindo-se Jards Macalé cantando “Hei Cantareira” de Jackson do Pandeiro”.
Ali, naquele fim de mundo “Guaraciaba não tem luz, gás, telefone, campainha, porteiros, síndicos, cobradores, talvez nunca tenha sido recenseado pelo IBGE, os Correios não sabem seu endereço. Mas dorme com canto de grilos nos matos, olhando as estrelas nos céus das noites limpas sem poluição”. Na chegada da noite chuvosa, despediu-se dos repórteres desejando boa viagem e perguntando se sabiam seguir pela estrada até Magé. Agradecidos, eles prometeram voltar para atender o seu pedido:
- Trais uns agasaios pra mim, viu? Aqui faz muito frio.

* POSFÁCIO
Reconstruí essa História seguindo as pegadas do repórter Luiz Carlos de Souza e o fotógrafo U. Dettmar do Rio de Janeiro, que numa manhã chuvosa de sábado, dia 7 de junho de 1975, chegaram à Guia de Pacobaíba, Mauá, Distrito de Magé, em busca de João Antônio Guaraciaba, ex-reprodutor de escravos, para ouvirem seu depoimento.
Publicado na mesma época em forma de reportagem, na revista “Livro de Cabeceira do Homem” pela Editora Civilização Brasileira, e hoje perdida na poeira do tempo, procurei reescrevê-la resumindo o extenso texto, numa tentativa de resgatar das cinzas do esquecimento, um pedaço vivo e cruel da escravidão, ressuscitado da memória desse interessante personagem, e integrando-o na Historia da Baixada Fluminense.

Guilherme Peres (Pesquisador e diretor do IPAHB - Instituto de Pesquisas Aplicadas e Histórias da Baixada Fluminense)

terça-feira, abril 25, 2006

ESTRADA DE FERRO RIO D'OURO, GARANTIA DE ÁGUA PARA O RIO DE JANEIRO (Colunas 163 e 164)

►A Estrada de Ferro Rio D'Ouro começou a ser construída em 1876, para o transporte dos tubos de ferro e demais materiais, que completaram as obras de construção das redes de abastecimento d'água, asseguradas por um contrato assinado e dirigido pelo Dr. Paulo de Frontin, obrigando-a fornecer o precioso líquido no prazo de seis dias à Cidade do Rio de Janeiro. Somente em 1883, em caráter provisório, começaram a circular os primeiros trens de passageiros que partiam do Caju em direção à represa Rio D'Ouro. A Baixada Fluminense seria mais tarde dividida em três sub-ramais: Ramal de São Pedro, hoje Jaceruba; ramal de Tinguá, que se iniciava em Cava (Estação José Bulhões); e o ramal de Xerém, partindo do Brejo, hoje Belford Roxo.

Em 1896, época que os trens de passageiros passaram a circular com melhor regularidade partindo do Caju, atravessavam a rua Bela, Benfica etc. até passar por Irajá em direção à Pavuna. Nesta estação, última parada antes de adentrar a Baixada, vê-se o antigo canal onde ficava o porto rodeado de trapiches outrora pertencentes ao Comendador Tavares Guerra. Próximo a ele, uma estátua em ferro de mulher oferecia água aos passantes por uma cornucópia, chamada de "Bica da mulata".

Nas terras de Meriti, os trilhos foram assentados sobre a antiga "Estrada da Polícia", que partindo da Pavuna, iam encontrar-se com as terras de "Iguassú", em continuação à estrada que, vindo da Corte, finalizava no Rio Preto. A próxima estação é Vila Rosaly, que substituiu a "Parada Alcântara", e homenageou a esposa do Dr. Rubens Farrula, iniciativa da Empresa Territorial Lar Econômico, loteando as terras denominadas "Morro da Botica" ou dos "Barbados", em referência aos pastores israelitas que residiam próximo ao cemitério dessa comunidade e usavam barbas longas.
Coelho da Rocha - recebeu o nome do proprietário dessas terras, Manoel José Coelho da Rocha, que as cedeu para a passagem dos trilhos e colocação dos dutos, lutando posteriormente para sua transformação em transporte de passageiros. Seu neto Almerindo Coelho da Rocha, herdeiro do que sobrou da antiga fazenda criada por Cristóvão Mendes Leitão em 1739, desfez-se dela, vendendo-a para loteamento.
Belford Roxo - Antiga fazenda do Brejo e anteriormente, Calhamaço, lembrando o antigo canal do calhamaço aberto pelo Visconde de Barbacena (seu antigo proprietário), e que formava um braço do Rio Sarapuy. Sua estação recebeu este nome em homenagem a Raimundo Teixeira Belford Roxo, chefe da 1ª divisão da inspetoria de águas. Havia em frente a esta estação um artístico chafariz de ferro jorrando água, que o povo denominou de "Bica da Mulata", cuja figura mitológica de uma mulher branca sobraçando uma cornucópia oferecia aos passantes o líquido precioso, que a oxidação do ferro transformou em "mulata". Cópia da estátua existente na Pavuna.
Areia Branca - Como o nome sugere esta parada era cercada de extenso areal.
Heliópolis - Hélios = sol; polis = cidade, ou cidade do sol. Denominação de uma antiga cidade do Egito cujos habitantes adoravam o Deus Rá.
Itaipu - Ita = pedra; ipú = onde a água faz ruído, do Tupi-guarani, onde a água estronda.
Retiro - Nome do rio que esta ferrovia transpunha (Atual: Miguel Couto).
Figueira - Nome do proprietário das terras em que foram assentados os trilhos.
José Bulhões - Também proprietário da localidade pertencente à povoação de Cava, início de outro ramal com destino a Tinguá.
Cachoeira - Em suas terras corriam volumosas águas que desciam da Serra do Comércio, compostas dos rios Sabino e Boa Vista, servindo às adutoras do São Pedro.
Paineira - Homenageia uma árvore abundante no Sudeste, da família das malváceas (Atual: Adrianópolis).
Rio do Ouro - Faz jus ao rio do mesmo nome que corre pouco além de sua estação.
Santo Antônio - Neste trecho, a linha atravessava as terras da fazenda da Limeira, pertencentes à Finnie, Irmãos & Cia., e corria sobre três pontilhões.
Saudade - Parada que assimilou o nome de antiga fazenda da região ainda dos tempos das sesmarias, pertencente a uma família portuguesa.
São Pedro - Era o ponto final da linha deste ramal situada na base da serra do Couto. Os trilhos, porém, prosseguiam para o caso de manutenção até atravessarem os córregos Maria da Penha, Jequitibá e o Rio São Pedro, chegando à casa do administrador, limites do morgadio de Matto Grosso e nas vizinhanças das terras do Marquês de São João Marcos, Pedro Dias Paes Leme, descendente de Fernão Dias, o caçador de esmeraldas (Atual: Jaceruba).
Sub-ramal do Tinguá:
José Bulhões - Início dos trilhos que partiam em direção Norte em busca da raiz da serra do Tinguá.
São Bernardino - Situada em terras da fazenda São Bernardino, pertencente a Jacintho Manoel de Souza e Mello, um dos opulentos comerciantes da Vila de Iguassú, com a firma Soares & Mello, onde se vê sua bela casa assobradada em uma elevação do terreno e sinalizada por um caminho que, partindo da estação e ladeado por uma alameda de palmeiras imperiais, ia terminar à entrada principal deste palacete.
Iguassú - Sinalizava a região da antiga Vila de Iguassú. Com uma estrada perpendicular à linha, encontrar-se-ia esta antiga sede do Município e um dos portos fluviais mais notáveis da então Província do Rio de Janeiro.
Barreira - Próximo a esta parada, os trilhos cortam um morro argiloso, justificando seu nome. Aqui foram instaladas nos anos 30 as "granjas da Conceição" que dividiram uma área de 200 alqueires em lotes para chácaras e sítios.
Tinguá - Fim de linha na velha estação de passageiros. Situada à margem esquerda da serra velha, entretanto, seus trilhos continuavam para a direita na extensão de 6 km, até a represa do Bacuburú.
Sub-ramal do Mantiquira :
Belford Roxo - Partindo desta estação em direção Nordeste, a linha transpõe o Rio Botas e atinge a garganta do Manuel Ignácio, cujo nome se refere a Manoel Ignácio de Andrade Souto Maior Pinto Coelho, Márquez de Itanhaém, senhor do morgadio de Matto Grosso, cujas terras pertenceram ao Brigadeiro Francisco de Paula de Bulhões Sayão. Assim como a Fazenda Monte Alegre, que entre seus herdeiros, contava com D. Alice Sayão, casada com o Dr. João de Carvalho Araújo, que viria a ser diretor da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Aurora - Nome também de uma velha fazenda que existiu na região, cortada pelos Rios Sayão, Botas e o Rio Baby.
Baby - Nome da parada, herdado do rio que era atravessado um pouco antes.
Parada 43 - Era antiga posição quilométrica da parada a contar do Caju (42.408m).
Lamarão - Do radical de "lama", significa a lagoa formada pelas chuvas nas depressões do terreno.
Mantiquira ou Mantiqueira - Antiga "João Pinto". Deu-lhe o nome o rio em cujo vale estende-se a linha que se dirige às represas do Galrão. É a estação de entroncamento da linha do Xerém. Está situada na velha Fazenda da Posse, pertencente à família Pereira de Sampaio. Dos mananciais que abasteciam o Rio de Janeiro é o Mantiquira o que contribuía com maior volume de água.
Galrão - Parada e fim da linha situada na antiga fazenda do Cônego Galrão, comprada pelo Governo em 1886 ao seu então proprietário Manuel Ubelhart Lengruber.
Mantiquira a João Pinto - Outro ramal partindo da Mantiquira tomava rumo Norte e passava por Piedade. Pequena parada, após transpor 8 bueiros até chegar em Xerém.
Xerém - Situada na povoação que constituiu a sede do 6º distrito do Pilar, no Município de Nova Iguaçu, tem seu nome originado no antigo proprietário dessas terras, o inglês John Charing, que desde 1725, estava ocupado em alugar barcos para transporte, através do Rio do Couto (ou Pilar), na passagem do Caminho do Ouro. Convivendo com escravos e pessoas de pouca instrução, teve seu nome modificado para Cherem e, posteriormente, definindo sua corruptela em Xerém.
João Pinto - Final da linha deste sub-ramal junto à represa para a captação das águas do rio do mesmo nome.
Registro - este sub-ramal partia de Xerém em direção às represas do Covã, Itapicú, Paraíso, Alfa e Perpétua.

(Guilherme Peres, historiador e pesquisador do Instituto de Pesquisas e Análises Históricas e de Ciências Sociais da Baixada Fluminense-IPAHB)

Bibliografia:
BARROS, Ney Alberto Gonçalves, "Estrada de Ferro Rio D'Ouro", Apostila, 1999, RJ; SANTOS, Noronha, "Meios de transporte no Rio de Janeiro", Biblioteca Carioca,1996, RJ; VASCONCELOS, Max, "Vias Brasileiras de Comunicação", Imprensa Nacional, 1935, RJ.

(Publicada em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9064, de 14 A 28-04-2006, pg. 5. CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO)

sexta-feira, abril 07, 2006

ESTRADA DE FERRO LEOPOLDINA FOI O CAMINHO DO PROGRESSO DE CAXIAS (Coluna 162)

►A “Estrada de Ferro Leopoldina Railway”, concessionária da The Rio de Janeiro Northern Railway Company - cujo primeiro nome é uma homenagem à princesa D. Leopoldina, foi a primeira concessão para uma estrada de Ferro que, partindo diretamente da cidade do Rio de Janeiro, alcançasse a região serrana de Petrópolis. Concedido em 4 de novembro de 1882, pelo decreto nº 8725 a favor de Alípio Luis Pereira da Silva, com privilégios durante setenta anos, tendo sido seus estudos aprovados em 15 de setembro de 1883. A 28 de fevereiro de 1884 iniciou-se o trabalho para assentamento dos trilhos, o que levaria dois anos, até sua chegada em Meriti (atual Duque de Caxias), em 23 de abril de 1886. Partindo da sua estação inicial em São Francisco Xavier, seguia em direção às outras: Triagem, Bonsucesso, Penha e Meriti. Os outros pontos do percurso eram simples parada: Benfica, Amorim, Ramos, Olaria, Brás de Pina, Cordovil e Vigário Geral.
O prof. Rogério Torres, em recente crônica, comentando a entrevista do antigo morador José Luiz Machado (Machadinho) publicado no jornal “Tópico” em 1958, quando da chegada desta ferrovia ao vale do Meriti, assim registra:
“Nessa Meriti, de população rala e devastada pela malária, quatro famílias se destacavam, por serem donas de engenho no local; eram elas: a do capitão Luís Antônio dos Santos (Lulu dos Santos), dona da fazenda do Pau-Ferro, no Parque Beira-Mar; a do coronel Macieira, proprietário da fazenda do Engenho Velho, no 25 de Agosto; a de Antônio Tomé Q. Menezes, da fazenda da Vassoura, no Gramacho; e a de Antônio Telles Bittencourt, da fazenda Vassourinha, no Parque Lafaiete”.
Machadinho também descreve os primeiros caminhos que atravessavam a região: “A rigor, não havia ruas em Meriti, apenas precários caminhos. As principais vias eram a Estrada da Freguesia Velha, atual Avenida Nilo Peçanha, que ligava Meriti a Quibandê (São João de Meriti); Estrada da Covanca, que começava na Estrada da Freguesia Velha e terminava no Porto da Chacrinha, atualmente constituída pela Rua Mauriza e Estrada da Várzea; Estrada do Sarapuí-Pequeno, atual Avenida Duque de Caxias; Estrada do Engenho, ligando o Porto do Engenho à fazenda do Pau-Ferro, hoje Avenida Presidente Vargas; Estrada do Pau-Ferro, que ligava a Estrada do Sarapuí-Pequeno ao Caminho da Trairaponga, depois de passar pela Jaqueira (Centenário) até a Chacrinha”.
Antes de 1897, quatro trens trafegavam diariamente, na única linha que até então existia, com desvios: em Bonsucesso, Penha e na Parada de Lucas. Em Meriti, as obras da construção da ferrovia exigiram extensos aterros, dificultando a drenagem de uma região pantanosa, onde florescia a tabôa, fonte de renda de uma população escassa que se limitava a extraí-la para confecção de esteira e lenha para fabricação de carvão, transportando-os para a capital, aproveitando o deslocamento rápido da nova ferrovia. Os trabalhos continuaram com a extensão da ferrovia até o entroncamento da sua linha em Inhomirim, principal tronco para a subida da serra em conjunto com a Companhia Estrada de Ferro Príncipe do Grão Pará, que partia do Porto de Mauá até sua chegada em Petrópolis.
Saneamento - No principio do século XX, Meriti (Caxias) era um abandono completo. As obras de saneamento iniciadas com a República nunca foram continuadas. No governo Nilo Peçanha, verificaram-se alguns ensaios, abandonados na gestão Hermes da Fonseca. Esta região de charcos e pantanais estava entregue aos focos de malária, que o mosquito anofelino teimava em contaminar. Até que em 1933 foi criada a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense, subordinada ao Departamento de Portos e Navegação do Ministério da Viação e Obras Públicas, dirigido pelo engenheiro Hildebrando de Góis. Com o dessecamento do solo e desobstrução dos rios, obras que se arrastaram até o final desta década, sob a direção do DNOS - Departamento Nacional de Obras de Saneamento, deixaram a Baixada pronta para receber sua ocupação através dos loteamentos.
Nos anos seguintes, a região começou a sentir os efeitos da expansão urbana:
“O primeiro loteamento feito em Meriti foi realizado pelo engenheiro Abel Furquim Mendes, que em 1918 dividiu uma área ao longo da via férrea, entre as ruas Pinto Soares e Manoel Reis. Estes lotes foram oferecidos a cinqüenta mil réis cada. Entretanto, a venda foi um fracasso”.
Em 1922, começariam a surgir loteamentos que dariam origem a alguns bairros. O primeiro foi a Vila Centenário, de propriedade de D. Francisca Tomé, no local do antigo sítio da Jaqueira. A seguir, veio o loteamento da Vila Itamarati, de propriedade de Antônio Gonçalves Ferreira Neto, que hoje constitui o bairro Itatiaia. O terceiro loteamento foi o do Parque Lafaiete. A primeira rua calçada foi a José Alvarenga, que na época se chamava Rua do Ingá, devido à presença de um frondoso ingazeiro nas imediações. Em 1911, já funcionavam as estações de Gramacho, São Bento, Campos Elíseos, Primavera, Saracuruna e Parada Angélica.
O nome de Merity continuava denominando a estação local, apesar da população passar a chamar-lhe Duque de Caxias, por haver sido descoberto nesta região, o local de nascimento do herói nacional, localizado na fazenda São Paulo, bairro da Taquara. Liderado pelo Dr. Manoel Reis, influente político em “Iguassú”, município ao qual pertencia Merity, foi feito em 1932 um “abaixo-assinado” ao então interventor do estado Dr. Plínio Casado, pedindo “a troca das tabuletas” da antiga estação. O Correio de Iguassú, “vanguardeiro das grandes causas”, assim registrou o “grandioso” evento no dia 22 de maio de 1932. “Apesar de oficializada a nova designação, o nome de Merity continuava no alto da Estação local, causando a mais justa estranheza”. Procurando corrigir essa verdadeira anomalia, o Sr. Jayme Fischer Gambôa entrou em entendimento com os diretores da Companhia, não lhe sendo difícil conseguir aquiescência imediata para a mudança da referida tabuleta. (Guilherme Peres, pesquisador e membro do IPAHB)

Bibliografia: GOULART (Sílvio, “Correio de Iguassu” nº 59, Nova Iguassu, 1932, RJ),
SANTOS (Noronha, “Meios de transporte no Rio de Janeiro”, Biblioteca Carioca, 1996, RJ) e
TORRES (Rogério, “As histórias de machadinho”, Revista Caxias Magazine nº 175, Duque de Caxias,2000, RJ)

sexta-feira, março 31, 2006

VOCÊ CONHECE O DISTRITO DE XERÉM? (Coluna 161)

Ruínas da Igreja Velha de Xerém – Capela de Santa Rita da Posse, fundada em 1766, em propriedade do Capitão-Mor Francisco Gomes Ribeiro, senhor da Fazenda e do Engenho da Posse e também administrador do Oratório de Santo Antônio da Posse

► Contestando a definição do "Aurélio" para a origem de Xerém, os pesquisadores Armando Valente e Nélio Menezes (este, já falecido), garantem que a origem do topônimo que identifica o Quarto Distrito de Duque de Caxias não passa de uma corruptela aportuguesada do nome do barqueiro inglês Jonh Charing (cuja pronúncia é "Xérim"), que, nos idos do Século XVII fazia transporte em seus barcos do porto do Pilar para o interior da região, em direção ao Sítio do Couto, na divisa com o hoje município de Petrópolis. Segundo o "Aurélio", o topônimo Xerém seria derivado do produto conhecido popularmente como "Xerém" ou canjiquinha, resultado do esmagamento incompleto do milho, muito utilizado na culinária nordestina e na alimentação de aves recém-nascidas, Segundo os pesquisadores Armando Valente e Nélio Menezes, em trabalho publicado no Guia de Xerém (http://www.guiaxerem.com.br/), desde a descoberta do Brasil os colonizadores portugueses tinham dificuldade de atravessar o paredão rochoso da Serra da Estrela, o que só foi conseguido quando, em fins de 1,669 e a partir do interior do Vale, foi aberto um novo Caminho das Gerais, que terminava no porto do Pilar.

"A natureza pujante e hostil que impedia a penetração de aventureiros, foi vencida, não por esforço dos nossos, de baixo para cima, mas sim, pela intrepidez do paulista Garcia Rodrigues Pais, filho do legendário caçador de esmeraldas Fernão Dias Pais. A custa de seus próprios recursos, com grandes sacrifícios e perdas de muitos escravos, o bandeirante abriu uma picada de cima para baixo, vindo com sua gente de Paraíba do Sul, em fins de 1669, mais ou menos em linha reta, até a freguesia do Pilar. (Armando Valente e Nélio Menezes)

Com a abertura do "Caminho Novo das Gerais", em substituição ao Caminho Velho (que começava em Paraty e era alvo dos piratas que circulava pela costa brasileira) a região entre o Pilar e os contrafortes da Serra do Mar ganhou um novo status, com a colonização das áreas às margens dos rios que cortam a região, o que exigia canoas mais rápidas e de maior porte. É quando entra em cena o piloto de barcos londrino John Charing, um dos primeiros súditos da Coroa Inglesa a se fixarem no Brasil. Com a sua experiência em transporte marítimo, o novo morador da região logo percebeu que, com a quantidade de rios que ali havia, o futuro apontava para o transporte em barcos, mais rápidos e eficientes que o lombo de mulas e burros, muito utilizados pelos colonizadores para vencerem a Serra do Mar em direção ao Vale do Paraíba.

Com apoio da Corte, logo John Charing era dono de uma frota de velozes barcos, que transportavam até o porto do Pilar ou do Rio de Janeiro (atual Praça XV de Novembro) tudo que era produzido na região, como café, açúcar, cachaça, feijão, cerâmica e farinha. Com o passar dos tempos, a população da região, que não conhecia nem falava Inglês, começou a mudar a pronúncia do nome do barqueiro, que logo foi rebatizado de João Cherém. Com as mudanças ortográficas de meados do Século XX, chegamos à atual grafia de Xerém. "Mais seguras, eficientes e rápidas do que as outras, as canoas de Charing eram as preferidas do público, todos queriam viajar com ele. O tempo foi correndo e seu nome foi se associando indelevelmente, não só ao trajeto que fazia, mas, também, ao local para onde a cada viagem se dirigia”.

Por vontade popular e a tradição oral, estava assim batizado com o nome do barqueiro inglês, o rio e todo o pé de serra que o cercava. Convivendo com escravos e mais pessoas, em sua maioria, de pouca ou nenhuma instrução, Charing teve seu nome corrompido para Chérem, e posteriormente corrigido pela ortografia oficial para Xerém. João Xerém casou-se duas vezes e deixou o primeiro matrimônio com larga descendência. Muitos dos seus netos nasceram na Freguesia do Pilar" (obra citada)

Xerém entrou definitivamente no mapa econômico do País no final da II Guerra Mundial, com a instalação de uma empresa para fazer revisão dos motores de avião, uma área de transporte que se desenvolveu muito a partir da transformação do invento de Santos Dumont em arma de guerra. Com a derrota do trio Itália-Alemanha-Japão, em maior de 1945, a fábrica de Xerém foi adaptada para a produção de caminhões sob licença da italiana "Alfa Romeo", dali saindo os veículos que, nos anos 60, dominavam o transporte rodoviário nacional, ganhando do povo o apelido de "João Bobo", pois era um veículo lento para os padrões de hoje, mas o único capaz de vencer as "rieiras" e atoleiros da velha Rio-Bahia e de outras estradas que demandam o interior do País. Nos anos 70, a fábrica foi vendida à Fiat, que logo desativou a sua linha de produção, de onde também saiam os automóveis "Alfa Romeo", que aqui ganharam um novo título, "JK", em homenagem ao homem que construiu Brasília.

(Publicada em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9062, 24-03 a 07-04-2006, pg.
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO. FOTO: TÂNIA AMARO)

sexta-feira, março 17, 2006

DO Nº 311 À DELEGACIA LEGAL, VIOLÊNCIA E IMPUNIDADE (Coluna 160)

► Editado no início dos anos 40, em pleno Estado Novo, o Código Penal tinha, entre seus objetivos não confessados, punir rigorosamente três tipos de criminosos: pretos, pobres e prostitutas. No Estado do Rio, sob o comando do Interventor, o Comandante. Ernani do Amaral Peixoto, genro de Vargas (nepotismo descarado e deslavado), as Subdelegacias de Policia eram cargos muito disputados, embora não fossem remunerados. Através deles, os políticos ligados ao Governo colocavam nos "seus devidos lugares" os cabos eleitorais dos adversários.
Em Duque de Caxias, Distrito emancipado de Nova Iguaçu, a Sub-delegacia foi erigida à condição de Delegacia, com direito a delegado e meia dúzias de soldados da Polícia Militar, os conhecidos "meganhas". Localizada no nº 311 da Avenida Plínio Casado, em frente à Estação ferroviária, a Delegacia era abastecida com a água de um poço, que o ex-repórter de polícia, colunista social e delegado Silbert dos Santos Lemos, já falecido, no livro "Sangue no 311", denunciou que ali era um "sumidouro" onde eram jogados os presos com diversas passagens pelos xadrezes infectos da tal Delegacia, isto é, os Delegados consideravam esses presos como "irrecuperáveis". Santos Lemos confessou, inclusive, que dera o tiro de misericórdia num marginal, que estivera preso na 59ª DP, execução comandada pelo delegado Amyl Rechaid e realizada na subida da estrada para Petrópolis.

Ocorre que a mobilidade social criou nova categoria social, a dos novos ricos, aqueles que, por um golpe de sorte, por competência ou esperteza, conseguiam ganhar dinheiro e, com ele, buscavam projeção social. Desse grupo participavam os "banqueiros do bicho", os donos de hotéis que exploravam o lenocínio, os donos de fábricas de bebidas que sonegavam e fraudavam o Imposto de Consumo, os donos de mercadinhos que vendiam feijão, arroz e açúcar no chamado "câmbio negro", os pecuaristas que adicionavam água ao leite e os donos de lotação, entre outras categorias menos importantes.

A partir da construção de Brasília, com o golpe do "caminhão no cavalete", um engenhoso truque para fraudar a fatura sobre transporte e que foi revelado pela minissérie "JK", os novos ricos começaram a diversificar as suas atividades "empresariais" como contrabando, tráfico de armas, de drogas e de influência e, mais recentemente, fraudes contra a Previdência Social e o SUS. Como era de se esperar, a taxa de descaramento nacional aumentou mais do que a inflação e os "novos ricos" passaram a debochar dos "manés", pessoas comuns como a imensa maioria do povo brasileiro que insiste em registrar suas empresas sem apelar para os famosos "laranjas", assinar as carteiras dos seus empregados, recolher as contribuições ao INSS, PIS/PASEP, pagar o Imposto de Renda devido, entre outras obrigações do Cidadão de Bem!

A concorrência predatória dos "piratas" e "laranjas" acabaram levando alguns setores do empresariado e da sociedade civil a denunciarem os golpes contra o Patrimônio Público e, a partir de 88, com os novos poderes, o Ministério Público passou a investigar e abrir inquéritos sempre que alguma falcatrua era denunciada. Com isso, os homens de colarinhos impecavelmente brancos passaram a ser presos e, depois de algemados, jogados em camburões, como ocorreu com o deputado Jader Barbalho e com o ex-deputado Sérgio Naya. Nesse meio tempo, a Juíza Denise Frossard, com apoio do Ministério Público, rasgou o véu de proteção dos banqueiros do "jogo do bicho" e, com isso, foram parar na cadeia figuras até então consideradas intocáveis, como Castor de Andrade, Carlinhos Maracanã e outros integrantes da máfia do jogo do bicho.

Rapidamente, nossos congressistas articularam janelas para impedir que as cadeias fossem dominadas pela "nova classe". A primeira foi criar a figura da prisão especial para quem tenha diploma universitário. Com a proliferação das Faculdades de fins de semana, não foi difícil para muitos marginais conseguirem o "canudo". Também foi criada a figura do cidadão com endereço conhecido, atividade econômica permanente para que tivesse direito a responder a processo em liberdade até condenação final. Mais uma vez a população que mora no "porão da sociedade" ficou de fora desses privilégios! Uma mulher que more numa favela e trabalhe como diarista, se for presa pelo furto de uma lata de leite num supermercado ou pelo seqüestro de um bebê, aguardará na cadeia até o final do processo. Afinal, quem mora em favela não "tem bons antecedentes", nem endereço fixo e diarista não tem carteira assinada. Já o garotão, que mora numa cobertura na Barra ou no Jaraguá (SP) e faz tráfico de drogas (o chamado "comércio exterior"), se for preso, logo terá a prisão relaxada, pois ele dirá que os 500 quilos de drogas em seu poder eram para "consumo próprio".

Depois do frio assassinato da sua filha, por um colega de elenco da TV Globo, Gloria Perez liderou uma campanha nacional e conseguiu mais de 1,2 milhão de assinaturas para o primeiro projeto de lei de iniciativa popular, aquele que criou uma nova categoria de crimes: os chamados hediondos. No rastro da comoção nacional diante da tragédia pessoal de Gloria Peres, foram elencados diversos crimes, cujos autores não teriam direito, como antes, à progressão da pena a partir do cumprimento de um sexto ano da pena, isto é, quem fosse condenado a 30 anos de prisão, pena máxima no Brasil, não poderia mais ir para o regime da prisão albergue (apenas dormir na cadeia) a partir do cumprimento de apenas cinco anos. Agora, nem isso mais acontecerá, pois os ministros do Supremo Tribunal Federal, que impediram a quebra do sigilo dos abastecedores do valerioduto, acabam de decidir que a figura do crime hediondo é inconstitucional. Isto mesmo: falar em crime hediondo no Brasil é violar os direitos de criminosos, como aquele deputado que "passava na motosserra" quem se atrevesse a desafiá-lo!
Da mesma forma que nunca se investigou o "desaparecimento" de presos da Delegacia do tristemente famoso "311" de Caxias, também não se poderá esperar que fiquem na cadeia, por muitos anos, os grandes criminosos. Até os bens dos traficantes, apreendidos pela Polícia Federal, estão sendo devolvidos aos bandidos por ordem judicial! Que país é este.

(Publicado em "O MUNICIPAL", Edição nº 9061, de 17 a 24-03-2006, pg. 5.
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO. FOTO: REPRODUÇÃO)

sexta-feira, março 10, 2006

OLGA TEIXEIRA, UMA HEROÍNA DA EDUCAÇÃO EM DUQUE DE CAXIAS (Final) (Coluna 159)

► No Colégio Municipal Marechal Castelo Branco, em 1974, foram incrementadas as atividades esportivas, com a criação de times de Futebol de Salão, de Vôlei, de Handebol e de Queimada, tendo o "Castelo" sido vice-campeão no Torneio Municipal naquele mesmo ano. Em 1975 iniciaram-se obras de ampliação, que iriam ser concluídas em 1977. Boa parte dessas construções, ampliações, melhorias foram feitas com o que a Caixa Escolar arrecadava. Em 25 de outubro de 1976 foi incorporada à escola, uma área de 12.500 m², destinada à construção da quadra de esportes. Isso se deve à persistência da Professora Olga Teixeira em constante disputa com os vizinhos pela posse da área.

Em 1977, foi completada a construção da ala nº 2, tendo também sido implantado o primeiro segmento do 1º grau, com cinco turmas, atendendo o mesmo nº de alunos de 1974. Em 1979, foi iniciada a construção de um Minicentro Esportivo, com três quadras polivalentes, vestiários masculino e feminino, refeitório e o Auditório, da nova cantina e uma sala para os professores de Educação Física e introduzido o atendimento aos portadores de necessidades especiais. Com isso, criam-se as primeiras turmas de deficientes auditivos do Município.

Em 1980, o Colégio Municipal Marechal Castelo Branco sagrou-se Campeão dos Jogos Infantis de Duque de Caxias, competição promovida pelo Departamento de Esportes da Secretaria Municipal de Educação. Com essa conquista, vários alunos, que se dedicavam ao atletismo, foram encaminhados (convidados) para fazer parte de equipes como: Universidade Gama Filho, Clube de Regatas Vasco da Gama, Fundação Roberto Marinho. Neste mesmo ano, tivemos a participação do VIMA - Vigilantes do Meio Ambiente, no desfile cívico de 25 de agosto, uma atenção pedagógica voltada para o meio ambiente, o que já demonstrava, à época, a preocupação com a ecologia, preparando jovens para a preservação do meio ambiente, preocupação esta prioritária nos dias de hoje.

Apesar do sucesso do "Castelo Branco" tanto na parte da educação formal, quando na esportiva, a sua manutenção deixou de ser, com raras exceções, prioritária para os prefeitos nomeados a partir de julho de 1971. Com isso, reduziam-se os recursos orçamentários para investimentos na melhoria das instalações, equipamentos e projetos do colégio, culminando com a proibição de cobrança da taxa de contribuição para a "Caixa Escolar", fundamental para a manutenção da unidade, face à secular "falta de verbas" orçamentárias.

Em 7 de maio de 1990, aos 60 anos, a Professora Olga Teixeira de Oliveira veio a falecer, vítima de um atropelamento, na Av. Rio Branco, na cidade do Rio de Janeiro. Na ocasião, dois ex-alunos ocupavam postos de destaque na vida política do Município: o prefeito Hydekel Freitas e o Secretário de Agricultura, Getúlio Gonçalves. Encerrava-se, ali, uma brilhante carreira de 42 anos dedicados ao Magistério, que fizeram da professora Olga Teixeira de Oliveira uma figura querida e respeitada por alunos e colegas e um marco na Educação em Duque de Caxias.
Por decisão do prefeito Hydekel Freitas, o nome da escola foi trocado, passando a se chamar "Colégio Municipal Professora Olga Teixeira". No mesmo ato, o nome do Marechal Castelo Branco foi usado para batizar uma escola no bairro Santa Lúcia, no 3º Distrito.

(Publicado em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9060, 10 a 17-03-2006, pg. 5. CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO)

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

OLGA TEIXEIRA, UMA HEROÍNA DA EDUCAÇÃO EM DUQUE DE CAXIAS (Parte 1) (Coluna 158)

A professora Olga Teixeira (esqueda) e o Prefeito Moacyr do Carmo durante uma solenidade nos anos 60

► Depois da criação do Colégio Municipal Aquino de Araújo, no final dos anos 50, pelo prefeito Francisco Correa, a Educação em Duque de Caxias passou por um momento de letargia até que, na segunda metade dos anos 60, uma feliz união de propósitos entre o prefeito Moacyr do Carmo e o governador Geremias de Mattos Fontes possibilitou que, através dos recursos do Salário Educação, Duque de Caxias recebesse mais de 35 Grupos Escolares, a maioria com 10 salas de aula, distribuídos, principalmente, pelos 2º e 3º Distritos, os mais carentes na época devido à distância entre os bairros mais populosos daqueles Distritos e o Centro da cidade. A multiplicação de escolas do então denominado Curso Primário pressionava, no entanto, as autoridades a criarem unidades voltadas para o Curso Ginasial.

A partir de fevereiro de 1967, coube à Secretária de Educação Hilda do Carmo Siqueira a tarefa de melhorar a rede e ampliar o número de vagas nas escolas municipais. Em 9 de março de 1970, começou a funcionar no Parque Lafaiete um segundo Ginásio Municipal, para onde foram transferidas nada menos de 12 turmas do "Aquino de Araújo", sendo três da 4ª Série e nove da 3ª Série. No dia 30 daquele mês, o quadro foi completado com a transferência de mais seis turmas, totalizando 720 anos, distribuídos em dois turnos, manhã e tarde. Face às pressões das autoridades do Estado e do MEC, o prefeito Moacyr do Carmo decidiu dar à nova unidade de ensino o nome do Marechal Castelo Branco.

A nova unidade surgia com algumas novidades em matéria de equipamentos, pois dispunha de uma biblioteca, formada por livros doados por donos de papelarias, além de uma sala de música, onde foi criado um Coral, e uma sala de Ciências. Fato notável para a época foi que as duas salas foram equipadas com recursos gerados pela "Caixa Escolar" mantida por contribuições de pais e alunos. A ajuda da Caixa Escolar também serviu para a compra de mapas, do mobiliário da sala dos professores, de vidros e persianas para as salas de aula e a montagem de uma cozinha, onde era preparada a merenda servida aos alunos.

Fiel ao dito popular de que, "em casa de ferreiro, o espeto é de pau", a Escola Municipal Marechal Castelo Branco, embora funcionando desde 9 de março de 1970, só em 25 de maio daquele ano foi legalmente criada, através do Decreto nº 721, sendo oficialmente inaugurado em 23 de agosto daquele ano, já com uma brilhante apresentação do seu Coral. Para dirigir a nova unidade, a Secretária de Educação, professor Hilda do Carmo Siqueira, foi buscar a professora licenciada em Línguas Neo-Latinas (Português, Latim e Francês), Olga Teixeira de Oliveira, dona de um currículo invejável, com destacadas passagens pelos Colégios Santo Antonio, Duque de Caxias (Ely Combat) e Aquino de Araújo, do qual fora, inclusive, diretora.

Em 1972, o Colégio já contava com 42 turmas, atendendo 1.764 alunos e um corpo docente de 96 professores, contra apenas 43 em 1970 e 81 em 1971. Em 1973, foram construídas mais duas salas de aula, para atender aos excedentes de um concurso de admissão dos mais concorridos da cidade, passando a funcionar, em 1974 com 48 turmas e 2200 alunos. A preocupação com o desenvolvimento do potencial artístico dos alunos era enorme, possuindo a escola, nesse ano um Coral, um Conjunto de Percussão, Banda Marcial, além de Grupos de Pintura e de Teatro As atividades desses grupos eram intensas, com apresentações em diversos eventos promovidos pelo Município.

(Publicado em "O MUNICIPAL", Edição nº 9059, de 17-02 A 10-03-2006, pg. 5.
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO. FOTO: ACERVO DA ASSOCIAÇÃO DOS EX-ALUNOS DA ESCOLA MUNIPAL PROFESSORA OLGA TEIXEIRA DE OLIVEIRA

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

HÁ 85 ANOS, CAXIAS INICIAVA UMA REVOLUÇÃO COM A ESCOLA "MATE COM ANGU" (Final) (Coluna 157)

► A Escola Regional de Meriti era, em tudo, inovadora. Começou a funcionar sem Programas ou Projetos, servia almoço aos seus alunos, dispunha de uma biblioteca e montou o seu Museus de História Natural com material recolhido aqui e ali pelos próprios alunos e professores. Ganhou um projetor de cinema do professor Edgar Roquette Pinto, fundador da Rádio MEC, responsável pela primeira transmissão de rádio no País.

Na tese de doutorado da professora Ana Chrystina, para a UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, sobre o papel das mulheres na Educação do País, foi destacado o fato da professora Armanda Álvaro Alberto ter sido, juntamente com Noemi da Silveira e Cecília Meirelles, as únicas mulheres signatárias do "Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, assinado por outros 23 educadores, entre os quais Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo, Edgard Sussekind Mendonça, Roquette Pinto e Venâncio Filho. Datado de 1932, o documento fazia a defesa intransigente da escola pública, gratuita e de qualidade para todos, sem quotas e sem bolsas de estudos como hoje pretendem os "gênios" responsáveis pela Educação no País.

- O Manifesto é visto como um marco da educação brasileira em favor da democratização do ensino. Ele é um dos documentos mais estudados do Brasil e, no entanto, ninguém se preocupou até agora em analisar o papel das mulheres - explica a professora Ana Chrystina em sua tese.
Depois de ganhar dos seus antigos proprietários o terreno onde funcionava, a "Escola Regional de Meriti" teve uma ajuda importante de um recém formado arquiteto: Lucio Costa, um dos criadores de Brasília. Foi dele o projeto da primeira sede da escola em alvenaria, que continua de pé, na Rua Deputado Romeiro Júnior, mais de 80 anos depois.

Infelizmente, em 1964, vendo que lhe falavam forças físicas para continuar a sua obra, a professora Armanda Álvaro Alberto tomou a difícil decisão de buscar uma entidade que, comungando os mesmos objetivos que sempre perseguira, pudesse dar continuidade ao seu trabalho. Depois de ver recusada a sua oferta de doação de todo o acervo da instituição por parte do Governo do Estado, ela optou por doá-la ao Instituto Central do Povo, uma instituição ligada a uma igreja evangélica norte-americana. Logo a professora perseguida por todas as Ditaduras que infelicitaram o País no Século XX, sempre com a acusação de que a professora era uma perigosa agente comunista!

Hoje, dá pena ver a situação em que vive a Escola Armanda Álvaro Alberto, nos fundos da Catedral de Santo Antonio, mesmo local onde fora edificada nos anos 20, em traços do jovem arquiteto Lúcio Costa. Ali, nada lembra a efervescência em que vivia a escola, que tinha como padrinhos personalidades como Roquette Pinto, Tristão da Cunha (ou Alceu Amoroso Lima), Edgar Sussekind de Mendonça (marido e parceiro de idéias de Da. Armanda), Francisco Lourenço Filho, Belisário Pena, Albino Vaz Teixeira, Custódio Aquino, Francisco Barboza Leite, Martha Rossi e Anísio Teixeira. Hoje, ela é apenas mais uma escola da rede municipal, ministrando o Curso Fundamental nos moldes ditados pelos burocratas de Brasília. A idéia de uma escola viva e participativa, sonhada pela jovem professora que trocara o conforto da Zona Sul do Rio de Janeiro pelas ruas empoeiradas da Vila Meriti, ficou para traz. Pior para a nossa juventude!

(Publicado em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9058, de 3 a 17-02-2006, pg. 5.
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO

sexta-feira, janeiro 27, 2006

HÁ 85 ANOS, CAXIAS INICIAVA UMA REVOLUÇÃO COM A ESCOLA 'MATE COM ANGU" (Parte 1) (Coluna 156)

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Os professores Edgar Sussekind de Mendonça e AnísioTeixeira (de pé) Martha Rossi, sua filha Silvana Rossi e Armanda Álvaro Alberto (sentadas) em flagrante feito durante uma sessão especial num dos cinemas do Rio de Janeiro

► No dia 13 de fevereiro de 1921 surgia na Baixada Fluminense uma escola rural que iria revolucionar a Educação em nosso País. Era a Escola Proletária de Meriti, que começava a funcionar à sombra de mangueiras e bambuzais num terreno da pequena Vila Meriti, um bairro proletário que surgira ao lado da pequena estação ferroviária. E a revolução começava pelo simples fato de que a Escola já dispunha de uma Biblioteca e um Museu, numa época em que os alunos só aprendiam o que estava nos livros. Pesquisa escolar, então, nem se sabia o que era.

A Escola Proletária, logo depois rebatizada como Escola Regional de Meriti - que se tornou conhecida na cidade como Mate com Angu, por ser a pioneira no fornecimento de almoço para seus alunos - nasceu do empenho de uma jovem professora, nascida e criada na Zona Sul do Rio de Janeiro, cujo pai era proprietário de uma fábrica de explosivos na Baixada, a Rupturita. Ao invés de aproveitar seu tempo disponível em passeios pelo Jardim Botânico, ou em intermináveis reuniões em casas de abastados amigos de sua família, ela resolveu implantar, nos confins da poeirenta Vila Meriti, um projeto que fracassara em Angra dos Reis, onde pretendia alfabetizar os filhos dos pescadores.

A jovem professorinha, Armanda Álvaro Alberto, soube canalizar as amizades que conquistara no círculo familiar para um projeto revolucionário de Educação. E escolhera a pequena estação, próximo à ponte sobre o rio Meriti, para sede do seu projeto. Entre os muitos amigos de seus pais e que participariam da implantação da Escola Regional de Meriti, a professora Armanda Álvaro Alberto conseguiu o apoio de professores de renome como Francisco Venâncio Filho, Edgar Roquette Pinto (o introdutor do rádio no País), Celso Kelly, do sanitarista Belisário Pena (assistente de Oswaldo Cruz), Heitor Lyra da Silva e do jornalista Tristão de Atayde. Sua maior inspiração, porém, vinha da Bahia, mais precisamente das idéias defendias pelo jovem educador Anísio Teixeira, mais tarde Secretário de Educação do então Distrito Federal (Rio de Janeiro), idealizador e primeiro Reitor da Universidade de Brasília no Governo JK.

Foi nas teorias de Anísio Teixeira sobre educação integral do jovem que a professora Armanda Álvaro Alberto usou inspiração para implantar a sua Escola Regional de Meriti. E a experiência aqui vivida pelo grupo de colaboradores da Escola foi tão importante, que, já em 1927, a instituição ganhava um voto de aplausos da I Conferência Nacional de Educação, realizada no Paraná. Baiano de Caetité, Anísio Teixeira nasceu em 12 de julho de 1900. Desde jovem, dedicara-se ao setor educacional, onde inspirou ou marcou com sua influência todas as reformas do ensino brasileiro desde a década de 20. Suas idéias muito influenciaram não só a educação brasileira, como o sistema educacional da América Latina Completou o curso secundário no Colégio dos Jesuítas, em Salvador, e o de Direito no Rio de Janeiro; graduando-se em Ciências de Educação pela Universidade de Colúmbia nos EUA. Era o secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal, em 1935, quando por iniciativa sua foi instituída a Universidade do Distrito Federal, historicamente a origem da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Um dos criadores da Universidade de Brasília e seu primeiro reitor, o professor Anísio Teixeira era membro do Conselho Federal de Educação quando apareceu morto, em circunstâncias misteriosas e até hoje não esclarecidas, no poço de um elevador, na Praia de Botafogo, em março de 1971.

(Publicada em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9057, de 27-01 a 03-02-2006, Pg.5.
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO. FOTO: ACERVO PESSOAL DA PROF. MARTHA ROSSI)

sexta-feira, janeiro 20, 2006

GLEIBY TEIXEIRA, UMA MEMÓRIA VILIPENDIADA (Coluna 155)

A idéia de dar o nome de Gleiby Teixeira à pracinha foi do professor Stélio Lacerda (esquerda), Diretor do Departamento de Cultura da Secretaria de Educação, prontamente aceita pelo então prefeito Renato Moreira da Fonseca (direita)


► Ele era um jovem e promissor artista de aguda sensibilidade. Era também uma pessoa afável e, talvez por isso mesmo, não teve forças para enfrentar o dia-a-dia de um Mundo em que ter é mais importante do que Ser, onde a Humildade foi substituída pela tola Vaidade, onde mandar é mais importante do que respeitar as leis e o outro. Assim, em poucas palavras, pode ser resumida a curta trajetória de um caxiense que tinha tudo para ser um dos mais importantes artistas plásticos do País, mas que - ante tanta ignomínia, tanto cinismo, tanta ambição desmedida - desistir de viver. Morreu jovem, mas deixou - entre dezenas de amigos e admiradores - exemplos de dignidade, de respeito e de paixão pelas cores. Ele era Gleiby de Almeida Teixeira, filho do poeta, advogado e jornalista Albino Vaz Teixeira, fundador do jornal "Trópico".

Em 1968, Gleiby Teixeira participou do "I Salão Duquecaxiense de Pintura”, realizado no Clube dos Quinhentos pela Sociedade de Cultura Artística de Duque de Caxias, criada e mantida pela teimosia cívica do jornalista Carlos Ramos. Ainda nos sombrios anos de chumbo e às vésperas do fatídico AI-5, Gleiby Teixeira participou, ao lado de Walter Collares, de uma exposição realizada no Teatro Armando Melo, um dos nossos poucos espaços voltados à Cultura e que acaba de ser fechado. Nessa exposição, as pinturas de Gleiby faziam contraponto aos desenhos e guaches de Collares.

Em 1969, Gleiby, concorrendo com outros vinte artistas, conquistou a sua primeira "Menção Honrosa" ao participar do " II Salão Duquecaxiense de Pintura ", agora realizado no Edifício Profissional, em espaço cedido pelo empresário Carlos dos Santos Vieira, outra figura importante da vida política, social e cultural de Duque de Caxias, capaz de promover shows de Roberto Carlos e Johnny Mathis nos anos 60 em seu CAP Country Club, com renda em benefício de instituições filantrópicas do Município.

Em depoimento para o livro "Uma Passagem pela Caxias dos Anos 60", do professor Stélio Lacerda, o jornalista e artista plástico Paulo Ramos revelou que, apesar do sombrio clima político no País, Duque de Caxias vivia nos idos de 68 um momento cultural muito favorável, "despontando artistas talentosos e criativos que se destacariam nos anos seguintes nos diferentes campos das artes. Entre eles, estavam Chico Fernandes, Gleiby Teixeira, Artos, Marcos Bonfim, Walter Collares, Rogério Torres, Do Carmo Fortes, Rodolfo Arldt, Armando Romanelli e Ediélio Mendonça".

Foi por isso que o prefeito Renato Moreira da Fonseca, logo após o trágico desaparecimento do jovem artista, nascido e criado na Rua Barão de Tefé, no 25 de Agosto, resolveu homenageá-lo, dando seu nome a um pequeno triangulo de terra, situado no entroncamento das ruas Barão de Tefé e Rua Ana Nery, ao lado da então Casa de Saúde Imaculada Conceição, mais tarde transformada em Hospital Mário Lioni. Pequena, mas acolhedora, a pracinha ganhou uma placa e um busto do artista, que deveria simbolizar o reconhecimento do povo caxiense à arte de Gleiby Teixeira.

No final de 2004, a Prefeitura resolveu "reformar" a Praça Gleiby Teixeira, instalando um gradil e algumas figuras geométricas em meio a algumas plantas ornamentais. O principal, o busto e a placa, que dava nome à acolhedora pracinha, onde mal caberia um fusca, desapareceram sem deixar rastros! Hoje, voltamos a te uma praça sem nome bem em frente à casa onde nasceu e viveu Gleiby Teixeira. A praça, pelas suas exíguas dimensões, ficou livre do inacreditável "trenzinho caipira", que, antes de ser uma sutil homenagem ao compositor Heitor Villa Lobos, é o retrato de como a Cultura é tratada neste País sem memória, onde, por razões mercantilistas ou mercadológicas se desfigura uma obra do arquiteto Sérgio Bernardes, como ocorreu com a fachada da antiga residência do deputado Tenório Cavalcante, a famosa "Fortaleza" da Avenida Presidente Kennedy, ou a tri-centenária Igreja de São João Batista de Trairaponga, construída nos idos de 1.647, hoje dedicada a Santa Terezinha do Menino Jesus, no Parque Lafaiete, ou se deixa vir abaixo a Capela de S. Bento por omissão da Igreja, dona de grande parte do patrimônio histórico do País, e do Governo Federal. Afinal de contas, a Cultura, num País que não respeita o seu passado, não rende votos, nem "mensalão"!

Ainda há tempo para a atual administração reparar o "crime '" praticado pelo governo anterior. Basta querer respeitar o passado recente da História de Duque de Caxias, como deve ser o comportamento de todos os governantes deste País.

(Publicada em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9056, 13 a 27-01-2006, pg.5
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO. FOTO: ACERVO PESSOAL DA PROF. MARTHA ROSSI)

sexta-feira, janeiro 06, 2006

FOLIAS DE REIS, A CULTURA POPULAR DESTRUÍDA A BALAS (Coluna 154)


Joacir Medeiros foi a primeira vítima da famosa "Chacina de Vigário Geral", na trágica noite que um bando de policiais chocou o mundo

►Na noite de 29 de agosto de 1993, cerca de 30 PMs do 9º Batalhão, que integravam um grupo de extermínio conhecido como "Cavalos Corredores", invadiram a favela de Vigário Geral para vingar a morte de quatro PMs no dia anterior, numa emboscada na Praça Catolé do Rocha, situada na parte "civilizada" daquele bairro suburbano da Leopoldina, onde os moradores ainda têm direito a água encanada, ruas asfaltadas e iluminadas, escolas, postos de saúde e transporte público. Esses direitos são negados pelo Poder Público a quem mora do outro lado do "Muro de Berlim", como é conhecido o muro da antiga Leopoldina, que separa os dois lados do bairro. O resultado da "invasão" foi o massacre de 21 moradores. A barbárie foi cometida por homens encapuzados, que atiraram sem piedade contra vítimas indefesas e inocentes.

Entre os 21 mortos pelos facínoras que, nas horas vagas são policiais militares, estava Joacir Medeiros, um pequeno comerciante de 69 anos, mestre da Folia de Reis Estrela Moderna do Rio de Janeiro, fundada por ele 41 anos antes da tragédia. Numa coordenada "ação de comando", os encapuzados se espalharam por pontos diferentes da favela. Na Praça Córsega, um grupo metralhou todos os trailers de ambulantes que vendiam cervejas e refrigerantes e fez a primeira vítima, Fábio Pinheiro Lau, de 17 anos. Depois, o bando executou Hélio de Souza Santos, de 38, metalúrgico desempregado. Minutos mais tarde, explodia uma bomba no Bar do Caroço, de propriedade do Sr. Joacir Medeiros.

O grupo encapuzado chegou ao bar dando um amistoso "boa noite". E todos responderam. Um dos encapuzados quis saber quem trabalhava. Todos trabalhavam! O grupo fez menção de ir embora. De costas, um dos encapuzados jogou uma bomba de efeito moral. A seguir, começaram os tiros. Joacir Medeiros, o dono da birosca, foi o primeiro a tombar. O enfermeiro Guaracy Rodrigues, de 33 anos, caiu no salão. No balcão, foi morto o serralheiro José dos Santos, de 47. No banheiro, tombou Paulo Roberto Ferreira, 44, motorista. No depósito, dois outros inocentes assassinados: o ferroviário Adalberto de Souza, 40, e o metalúrgico Cláudio Feliciano, 28. O último morreu no corredor, sem saída: Paulo César Soares, 35. A ação, que chocou o mundo como a "Chacina de Vigário Geral", manchou com o sangue das 21 vítimas a imagem da "Cidade Maravilhosa" e chamou a atenção mundial para um problema que aflige a população brasileira até os dias de hoje: a violência!

O Sr. Joacir Medeiros, o dono do Bar do Caroço e uma das primeiras vítimas, fundou a folia em 1952, na cidade de Mimoso do Sul, com o nome de Folia de Reis Estrela da Guia Em 1960, o comerciante se transferiu com toda a sua família para a cidade do Rio de Janeiro, onde decidiu rebatizar a folia com o nome que carregou até aquele fatídico dia 29 de agosto de 1993: "Folia de Reis Estrela Moderna do Rio de Janeiro".

Desde que foi trazida para o Brasil pelos portugueses, a folia sempre foi colocada nas ruas por devoção aos Três Reis Magos do Oriente. Uma tradição cultural dos árabes, que invadiram Portugal e Espanha no Século XVII, a Folia sai em peregrinação na noite do dia 24 de dezembro, indo de casa em casa de cada vila, recontando a saga dos Reis Magos na visitação ao Menino Jesus. A Jornada, como é conhecida a apresentação anual das Folias, termina no dia 6 de janeiro, o Dia de Reis da tradição católica. A folia fundada por Mestre Joacir saiu, pela última vez, para uma apresentação especial em Copacabana, no dia 22 de agosto daquele fático 1993, em homenagem ao Dia Nacional do Folclore, num evento que contou com o apoio da Federação de Reisado do Estado do Rio de Janeiro. Sete dias depois, a barbárie decretaria o fim do grupo, com o assassinato brutal do Sr. Joacir Medeiros, que, como as outras vítimas do bando de policiais, não teve nenhuma chance de defesa, ao contrário dos seus assassinos, até hoje impunes, mais de 12 anos depois da chacina.

A ação dos bandidos, que se abrigavam sob o secular uniforme da nossa Polícia Militar, fora mais longe do que havia sido planejada por seus mentores. Além de pôr fim à vida de 21 pessoas humildes - obrigadas a morar na favela por falta de uma política pública de habitação, de urbanização, de assistência social e de educação - a truculência policial também decretou, sem julgamento, o fim de um dos mais significativos grupos de Folia de Reis do Estado do Rio. A cultura popular brasileira perdia, de forma brutal, um dos seus representantes empenhados na sua preservação.

Ao contrário do Carnaval - com o indefectível desfile nos camarotes VIPS do Sambódromo de conhecidos marginais travestidos de mecenas da "cultura popular", merecendo até a edificação de um "Sambódromo", agora seguido por uma "Cidade do Samba", esta ao custo de mais de R$ 100 milhões de uma Prefeitura que não tem dinheiro para pagar o fornecimento de remédios e a alimentação dos pacientes internados nos hospitais púbicos - as "Folias de Reis" não recebem um tostão do Poder Público e são mantidas apenas por doações do cidadão comum e pela teimosia dos seus Mestres.

Talvez por isso mesmo, o trágico fim da Folia de Reis Estrela Moderna do Rio de Janeiro - como parte integrante da genuína cultura popular - nunca chamou a atenção da "grande mídia". A verdade é que poucos brasileiros ficaram sabendo que o assassinato do Sr. Joacir Medeiros também significou a morte do tradicional grupo de Folia de Reis, uma vez que nenhum órgão de imprensa registrou esse detalhe histórico. Infelizmente, em pleno Século XXI, na era da informática e da comunicação instantânea, se a Imprensa se omite ou desconhece o assunto, ele se torna desimportante.

(Publicado em "O MUNICIPAL", Edição Nº 9055, de 6 a 13-01-2006, pg. 5.
CONCEPÇÃO: ALBERTO MARQUES E JOSUÉ CARDOSO. FOTO: ACERVO DA FEDERAÇÃO DE REISADO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (FRERJA)