VISITA DE UMA FRANCESA
À BAIXADA NO SÉCULO XIX
Guilherme Peres (Historiador e fundador do IPAHB
Anotações pessoais e observações curiosas são hoje motivos de pesquisa de quantos procuram colher, na seara literária deixada por alguns viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil durante o século XIX, informações de valioso conteúdo histórico e antropológico.
A relação imensa desses visitantes que desembarcaram no Brasil, a maioria no Rio de Janeiro, portal de entrada para o país, deixou registrados suas impressões da cidade e seus arredores. Enfadonho seria mencionar seus nomes a partir de 1808 após a chegada da família Real, constituindo-se de cientistas, artistas, comerciantes, navegadores, contrabandistas e aventureiros.
Raríssimo, entretanto entre os visitantes a presença de uma mulher, deixando registrado em forma de livro, o testemunho de sua viagem durante a metade desse mesmo século publicado após sua volta à Europa, sob o título “Uma Parisiense no Brasil”. Estamos nos referindo a Adéle Toussaint-Samson, uma jovem francesa professora de dança e artes cênicas, que um dia sobraçando o filho e o marido, embarcou no porto de Havre a bordo do veleiro “Normandia” com destino ao Rio de Janeiro e veio “fazer a América”.
Sofrendo a epidemia de cólera que assolava a Europa em 1849, fazendo mais de “dezesseis mil mortos na cidade de Paris”, a crise se mostrava cruel para aqueles que dependiam do público para sua sobrevivência econômica, tornando vazias as casas de espetáculo, o casal foi convencido por um tio do marido, que havia obtido sucesso financeiro na Capital do Império do Brasil, a viajar para ali em busca de fortuna.
Garimpada entre essas poucas mulheres que por aqui passaram, deixando registrada sua presença, assinalamos a mais conhecida entre os pesquisadores, a inglesa Mary Graham, que nos visitou entre 1821 e 1825. Preceptora dos filhos do imperador D. Pedro I e exercendo com dificuldade essa atividade, durante menos de um ano demitiu-se devido às freqüentes intrigas palacianas. Ao voltar para a Europa publicou o livro intitulado “Diário de uma Viagem ao Brasil”.
O Porto de Estrela foi, por muitos anos, a porta de acesso a Vila Rica e seus tesouros.
ADÉLE TOUSSAINT-SAMSON
Adéle nasceu em 1826 na capital francesa. Filha de um professor de teatro e autor de peças teatrais cresceu entre o burburinho dos palcos parisienses, “revelando-se uma mulher de mentalidade avançada diante dos costumes vigentes em sua época”, diz Maria Inês Turazzi no prefácio de seu livro recentemente editado na Brasil.
Casou-se ainda jovem “por volta dos vinte anos de idade” com um dançarino de teatro nascido no Brasil chamado Jules Toussaint. Jules era filho de pais franceses, Auguste Toussaint e Josephine Toussaint que estiveram no Rio de Janeiro no período de 1815 até 1821.
Desembarcando no Brasil por volta de 1850 (a data não é precisa devido ao extravio do registro de estrangeiros nesse período), Adéle e Julie foram morar com o tio, um tal José Maria Toussaint, professor de dança “e outros francesismos muito valorizados pela aristocracia brasileira da época”. Mãe de um menino de um ano e meio de idade chamado Paul, foi fácil se adaptarem ao meio artístico e cultural da cidade, pois a comunidade francesa contava com centenas de “artistas, comerciantes, impressores, modistas e professores das mais variadas disciplinas, incluindo desde a própria língua francesa até matérias como a matemática, o desenho, o piano e a dança”.
Ao alugar uma casa na Rua do Rosário para onde se mudou com a família, Adéle descreve sua condição higiênica e o comércio que compunha esse arruamento: “Ela é estreita, triste e, por todo estabelecimento comercial não tem mais que vendas no térreo das casas, isto é, sombrias lojas onde se amontoam montanhas de carne seca e bacalhau, os sacos de feijões e de arroz, bem como os queijos de Minas...dizer-lhes que cheiro horrível exalam aquele bacalhau e aquela carne seca é impossível !...a rua é estreita, jamais varrida ou molhada, que o sol dos trópicos a aquece incessantemente e tentem fazer uma idéia das emanações que aqui se desprendem !”
No ano da chegada da família, um surto de febre amarela varreu a Capital do Império e seus arredores. “A mortalidade era tanta na cidade e os cemitérios estavam tão cheios que já não se podiam enterrar os mortos”. A própria Adéle caiu doente, em seguida a escrava que eles haviam alugado, e por último seu marido. Dos vinte oito passageiros do “Normandia” que chegaram à cidade juntos com o casal, havia apenas três meses, dezessete já haviam sucumbido.
A procura de um médico patrício por recomendação, chamado Dr. Paitre foi inútil, pois o mesmo havia contraído a doença e se ausentara da Côrte, obrigando Adéle e seu marido a se auto medicarem com remédios homeopáticos trazidos da França, oferecido pelo seu próprio descobridor Samuel Hahnemann. “Sem conhecer ninguém na cidade, sem médico, sem criado, com muito pouco dinheiro e um filho de dezoito meses que eu acabara de desmamar, assim era a nossa situação”.
ESCRAVIDÃO
Superada a doença, retornaram ao convívio das ruas e Adéle registra com um choque de revolta a realidade da escravidão: “a cada instante minha alma revoltava-se ou sangrava, quando eu passava diante de um daqueles leilões em que pobres negros, em cima de uma mesa, eram leiloados e examinados nos dentes e nas pernas como cavalos ou mulas, quando via o lance ser coberto e uma jovem negra ser entregue ao fazendeiro que a reservava a seu serviço íntimo, enquanto seu negrinho era vendido a um outro senhor”.
A visão horrenda do comércio de carne humana a ser oferecida pelas ruas, trouxe momentos de repugnância à jovem francesa. “Meu coração indignava-se quando alguns passos adiante, encontrava um pobre negro usando uma máscara de ferro; era ainda dessa maneira que se punia a bebedeira do escravo...e imagine que suplício sob aquele calor tropical”.
A fuga era punida com o rigor do carrasco, “os que tinham fugido eram atados por uma perna a um poste, outros traziam no pescoço uma grande canga, uma espécie de jugo com que se põe nos bois...outros eram enviados a Correção, onde, depois de os ter atado a um poste, quarenta, cinqüenta, sessenta golpes de chicote lhes eram administrados muitas vezes. Quando o sangue corria, parava-se; suas feridas eram pensadas com vinagre e no dia seguinte, recomeçava-se”.
A Igreja de Nossa Senhora da Piedade de Vila Inhomirim, onde foi batizado Luis Alves de Lima e Silva, Patrono do Exéercito, está em ruínas e pode desabar a qualquer momento se o IPHAN e Ministério da Cultura não agirem rápido (Foto: Arquivo/IPAHB)
A CIDADE
Adéle descreve as manifestações culturais e religiosas que se festejavam na cidade. A Quinta-feira Santa e o dia de São Jorge eram iniciados com procissões que passavam pelas ruas diante da multidão. “Todas as janelas da cidade, nesses dias embandeiravam-se de cortinas de damasco vermelho, azul ou amarelo”.
Os festejos de São João também são descritos com os detalhes das fogueiras acesas pelos negros espalhadas pela cidade, “nessas esquinas cozinham-se batatas-doces, e cana-de-açúcar, que são servidas muito quentes, em grandes bandejas, no meio da festa”. O lundu, dança de origem negra, era absorvida pela alta sociedade quando ela observa que “vi, nesses dias, algumas damas brasileiras dançar a pedido geral, o lundu... com um movimento de quadris e de olhos não desprovidos de originalidade, e que todo mundo deve acompanhar estalando os dedos como castanholas, para bem marcar-lhe o ritmo”.
Da estação e do embarcadouro na Praia de Mauá, inaugurados em 30 de abril de 1854, portanto há 154 anos, por D. Pedro II e o Barão de Mauá, pouco resta. (Foto: Arquivo/IPAHB)
PORTO DA PIEDADE
Antes de prosseguirmos relatando os registros contidos no livro, referentes a depoimentos de inegável interesse antropológico e geográfico para os estudiosos dessa região durante o século XIX, queremos descrever um pouco da história do porto da Piedade, em que nossa viajante desembarcou. Referência para os viajantes que se destinavam a Magé a partir desse século, ou subiam a serra em busca da região que mais tarde se transformaria em Teresópolis.
Durante o período da mineração, o povoamento de extensas áreas ao longo do caminho do Pilar em direção às minas, aberto pelo bandeirante Garcia Rodrigues Pais em 1704 através da serra do Couto e suas variantes, como a do Sargento-mor Bernardo Soares de Proença com o caminho do Inhomirim em 1724, que partindo do porto da Estrela, atravessava Córrego Seco, futura Petrópolis, inúmeros sesmeiros foram ocupando essas extensa áreas a partir do rio Paraíba do Sul, e subindo seus afluentes da margem direita em direção à serra do Mar: rio Preto, Socavão, Imbuí, Paquequer e Paquequer Pequeno, comunicando-se com os portos através do Caminho Novo ou de suas variantes.
É possível que durante a ocupação daquela região serrana, um escoadouro para a produção das fazendas, através de um desfiladeiro saindo em Frechal (atual Bananal) em Magé, fosse ao encontro de um porto à margem da baia de Guanabara, ao lado de uma capela dedicada a N. Sra. da Piedade de Magepe, ocupado desde o século XVI por Cristóvão de Barros, e cresceria nos séculos seguintes, salpicada por inúmeros engenhos e canaviais.
Baltazar da Silva Lisboa ao explorar as terras por trás da Serra dos Órgãos e registrá-las em um mapa, provavelmente subiu por essa vereda, transformada em caminho no princípio do século XIX.
Aceitando o convite de um amigo de seu marido, para visitarem uma fazenda, em Magé, de sua propriedade, e na esperança de livrar-se de uma febre que a perseguia, Adéle, o esposo e o filho, embarcaram em uma barca a vapor para atravessarem a baia de Guanabara em direção ao porto da Piedade. Durante três horas o barco navegou por entre “ilhas encantadoras”, e Adéle descreve alguns tipos humanos que faziam parte dos passageiros. “Gordos vendeiros portugueses, tiravam os sapatos e coçavam os pés durante a viagem; outros estendiam-se nos bancos, semidespidos, e roncavam, sem se importar com seus companheiros de viagem; negros sujos e malcheirosos, carregados de cestos e de gêneros de toda a natureza atravancavam o barco, de sorte que ficamos muito satisfeitos de deixar essa encantadora sociedade ao desembarcar na Piedade”.
Custódio Ferreira Leite, o futuro Barão de Airuruoca, junto com seu irmão Francisco Leite Ribeiro, abriram a suas expensas, uma estrada de Magé até a ponte do Sapucaia com vistas ao movimento que crescia no porto da Piedade. Foi Ferreira Leite quem iniciou nesse porto a partir de 1836, a construção de um hotel.
George Gardner, o botânico que percorreu a Côrte e as províncias do Rio de Janeiro, ali passou naquele mesmo ano, registrando em seu livro “Viagens no Brasil”: “Em Piedade onde apenas se encontram algumas poucas casas esparsas, achava-se em construção um grande hotel do coronel Leite, um senhor brasileiro que estava fazendo a própria custa, uma nova estrada através da Serra dos Órgãos para se ligar a que vai de Porto da Estrela aos Distritos de mineração”.
É desse hotel que vamos encontrar referência no seu livro, durante o desembarque da família Toussaint. “Que triste porto era aquele, naquela época! Havia ali apenas uma grande habitação, uma espécie de grande construção cujos imensos galpões serviam de entreposto aos gêneros da cidade e do interior. Lá paravam os fazendeiros, os mascates e os tropeiros”.
Ao chegar ao hotel, Adéle não poupa criticas ao estado de desleixo em que este se encontra. “Ali se alugam a toda essa gente, quartos cujos leitos devem ser habitados, juro-lhes, e dão-lhe de comer. No rancho, são reunidos confusamente mulas, cavalos carneiros e porcos. Era lá que as nossas montarias deviam nos esperar”.
Ao ser indicado um quarto para a mudança de roupas adequadas à montaria, a francesa ficou horrorizada com a falta de limpeza que se estendia aos dormitórios, “a sujeira daquele lugar não pode ser descrita. Eu não sabia onde colocar as roupas que tirava e as que ia pôr; as cadeiras estavam cobertas de poeira e os leitos eram ainda mais sujos; de sorte que hesitei mais de um quarto de hora antes de conseguir tomar a decisão de vestir-me”.
Ao se dirigirem às montarias para prosseguirem viagem “o Sr. P.,” dono da fazenda denominada São José, apresentou-lhes um pagem para acompanhá-los. Comentado com desdém o episódio verificamos que os olhos preconceituosos daquela francesa, após alguns anos no Brasil, ainda não estavam culturalmente habituados a nossa negligencia, “vejo chegar um negro de beiços grossos, nariz achatado, com lã de carneiro como cabeleira, que havia sido fantasiado com uma grande libré vermelha, cujos galões desbotados anunciavam, aliás os serviços prestados, e que devia sem dúvida, ter figurado no Théâtre Français e, sucessivamente, em todos os outros teatros de Paris, antes de vir adornar os ombros do pobre africano...uma calça de algodão grosso e enormes esporas de prata, presas por uma correia a seus sujos pés descalços”. A figura cômica do “pagem” despertou-lhe “uma enorme vontade de rir, que tive muita dificuldade de conter durante todo o tempo da viagem”.
Ao lado do fazendeiro, a família pôs-se a cavalgar, “meu marido em seguida ao lado do meu primeiro filho, que tinha apenas sete anos, e no entanto montava muito bem”. O início do caminho era arenoso, quase sem vegetação. Aos poucos adentram a floresta, e Adéle se extasia diante da sinfonia de sons partindo do seu interior, “gritos dos macacos e dos papagaios vêm lembrar de que está no Brasil... Todo o caminho então não é mais que um encantamento... Vêem-se apenas cipós e plantas parasitas, emaranhando-se nas grandes árvores. É uma profusão de folhas, de flores, de frutos, mais encantadora que tudo que o homem arranja ou, antes desarranja. Eu não me cansava de admirar”. O caminho era estreito, e percebemos que para chegarem àquela fazenda, tinham que atravessar uma região um pouco montanhosa, “tendo encontrado outros cavaleiros que cruzavam conosco, tivemos de colar nossos cavalos no rochedo”.
A FAZENDA
Após três horas de viagem chegaram à fazenda São José: “O sol começava a empalidecer”. Junto à porteira, o gado esperava para entrar no curral, “uma centena de bois, vacas e touros” lhes impediam a passagem. O fazendeiro chamou o pastor, “um pequeno moleque de uns onze anos, que tinha por toda a vestimenta apenas um saco de algodão grosso preso em torno de sua cintura por uma corda e erguido na frente como uma espécie de cuecas. O menino reuniu seus animais, e pudemos enfim atravessar a boiada, não sem apreensão de minha parte”.
Ao se dirigem aos quartos onde os esperava um banho, Adéle revela o costume de sorverem um cálice de cachaça “destinado a devolver-nos as forças”. O fazendeiro, que durante a viagem mostrou-se educado e amável, transformou seu caráter tornando-se estúpido e grosseiro com os servos, cerca de “cento e vinte negros e negras para o serviço da exploração agrícola... ele mal disse bom dia a uma mulher francesa que cuidava de sua casa, e mal respondeu aos escravos da habitação que se apertavam em redor dele para pedir-lhe a benção”.
Após o banho foi servido o jantar. Em uma sala “comprida e estreita”, apenas uma mesa quadrada compunha o mobiliário, em torno da qual se enfileiravam bancos de madeira. Sobre esta, a panela de feijoada acompanhada de “cestos cheios de farinha de mandioca, um grande prato de arroz cozido na água e duas galinhas, bem como bananas e laranjas”.
A carência de pães nas refeições, obrigava um negro a se deslocar a cavalo aos sábados, “a um pequeno vilarejo chamado Santo Aleixo, que tinha um padeiro que se dignava assá-lo uma vez por semana”.
O episódio a seguir é digno de registro neste pequeno roteiro seguindo os textos da visitante francesa. Após o jantar, à luz de velas colocadas sobre castiçais, Adéle descreve o encontro e o diálogo do fazendeiro com um feitor chamado Ventura e seus dois seguranças. “Os três tinham por vestimenta apenas uma espécie de camisa grosseira, posta por cima de suas calças de lona para vela...eles giravam em uma das mãos o chapéu de palha grossa, enquanto a outra estava munida de um comprido bastão com ponteira de ferro e Ventura segurava o chicote, insígnia de seu comando”. Um imenso facão pendurado na cintura completava o vestuário
As perguntas feitas pelo “senhor” num “tom seco e duro” eram respondidas pelos escravos com temor e humildade.
- “O que foi plantado esta semana ?
- Arroz senhor.
- Foi começado o corte da cana ?
- Sim senhor; mas o rio transbordou, e vamos precisar refazer os canais.
- Envia para lá vinte negros amanhã de manhã .
- Que mais ?
- Henriques fugiu.
- O cachorro! Ele foi apanhado ?
- Sim senhor, está no tronco.
- Que lhe seja aplicado vinte golpes de chicote e posta a canga no pescoço. . - Sim senhor. Um bando de porcos do mato está devorando todas as plantações
de batatas e uma onça foi vista perto da torrente; precisaríamos dos fuzis.
- Tereis três esta noite. É tudo ?
- Sim senhor.
- O engenho começará a trabalhar amanhã. Está em condições ?
- Sim senhor.
- Está bem. Agora chama os negros para a reza”.
Horrorizada com o espetáculo degradante que presenciou, Adéle não esconde sua perplexidade, registrando: “Foi lá que as misérias da escravidão apareceram para mim em toda a sua hediondez. Negras cobertas de andrajos, outras seminuas tendo por vestimenta apenas um lenço atado atrás do pescoço e sobre os seios, que mal velava seu colo, e uma saia de chita, cujos rasgos deixavam ver seu pobre corpo descarnado; negros de olhar feroz ou embotado vieram pôr-se de joelhos na laje da varanda”.
Marcas de tortura nos ombros desnudos deixavam ver os lanhos do chicote transformados em cicatrizes. “Vários estavam afetados por horríveis doenças, como a elefantíase ou a lepra. Tudo aquilo era repugnante, hediondo. O temor e o ódio, eis o que se lia em todos aqueles rostos, que eu nunca vi sorrir”.
Após a oração, os negros desfilaram diante dos brancos presentes pedindo a benção em que estes respondiam: “Eu te abençôo”.
O silêncio da noite cobriu o vale quando todos foram dormir. Ao amanhecer, os galos e o sino na varanda despertaram os escravos para o trabalho. Adéle levantou-se para assistir pela primeira vez, àquela cena diária, emoldurada pela paisagem bucólica que rodeava a região, “do alto da montanha, atrás da fazenda, uma magnífica cascata estendia seus lençóis de água prateada, e aquela montanha estava coberta de matas virgens, onde os frutos e as flores emaranhavam-se em uma confusão encantadora. Do outro lado, na frente da habitação, estendiam-se imensas pastagens, onde mais de cem cabeças de gado estavam reunidas. Os bois ainda dormiam”.
Postado nas portas da senzala, o feitor empunhava um chicote conferindo os que tardavam em sair. “Ô patife! Puxa p’ra fora !”, gritava o velho Ventura. Formados em três grupos de mais ou menos vinte cinco negros e negras cada um, seguiram destinos diferentes, um dos quais dirigidos por Ventura, “tomou o caminho do mato”. Outro, acompanhado de um carro de bois “com imensas rodas de madeira maciça” em direção ao canavial, e o terceiro para as plantações. Seguiu com um dos pequenos pastores os animais de chifres, “um segundo o seguiu com o rebanho de carneiros”, e Adéle registra ironicamente: “as barreiras abriram-se e todo aquele gado humano partiu com o outro para o trabalho”.
Elogiando o sabor do leite na refeição matinal, “como não bebi em nenhuma outra parte”, a francesa justifica: “por causa do perfume delicado que lhe dão as goiabas, as pitangas, as mangas e sobretudo as plantas aromáticas, de que as vacas são muito gulosas e com as quais se alimentam nas matas”.
Ao tanger o sino às nove horas anunciando o almoço, anotou a presença de duas cozinheiras: “a dos brancos e a dos negros, assim como há duas cozinhas”. Diante do cômodo enfumaçado dos negros, Adéle anotou o uso de dois caldeirões: um com feijões e o outro com angu. Humildemente os escravos chegavam com meia cabaça às mãos, sendo servidos pela cozinheira “com uma grande colherada de feijões, acrescentando um pequeno pedaço de carne seca da mais baixa qualidade, bem como um pouco de farinha de mandioca para polvilhar tudo; a outra distribuía o angu aos velhos e às crianças”.
Ao se afastarem resmungando pela pouca quantidade servida, e a carne em tão mau estado, que segundo a escritora “nossos cães por certo não iam querer saber daquela comida”. Arrastando-se pelo chão em plena nudez, alguns negrinhos “arrotavam suas rações de feijões, que seus frágeis estômagos mal podiam digerir; por isso, quase todos tinham barrigas grandes, cabeças enormes, pernas e braços franzinos, enfim, todos os sinais do raquitismo”. Não compreendendo o comportamento do fazendeiro que, mesmo do ponto de vista comercial, não tratasse bem seus escravos com o objetivo do lucro, ao negociar a “carne humana”, entretanto disseram-lhe que “não era assim em toda a parte, e que em várias fazendas os escravos eram muito bem tratados. Quero crê-lo; quanto a mim, digo o que vi”.
Adéle visitava freqüentemente os quartos da senzala onde essas crianças dormiam, “em esteiras postas sobre uma espécie de cama de campanha, em quartos cujo ar se renovava apenas por uma porta aberta para um corredor sujo, e viviam ali em uma podridão de que não se pode fazer uma idéia”. Suas mães, três dias após o parto, eram obrigadas a lidar com os serviços da casa enquanto amamentavam, e voltavam aos serviços da lavoura em poucas semanas, deixando seus filhos aos cuidados “de negras velhas inválidas ou de crianças de seis a sete anos, que lhes enfiavam por alimento uma espécie de papa feita de amido e água”.
Durante essas visitas, a francesa levava-os para passear e banhá-los, pois freqüentemente eram vistos acocorados sobre poças de água “com os pés na lama e a cabeça sob o sol ardente, sem que ninguém se preocupasse com isso”.
Durante sua permanência na fazenda, Adéle passeou por seus arredores a cavalo, lembrando-se do dia em que o fazendeiro convidou-os para uma visita a uma pequena fábrica
de fiação de algodão de propriedade de um norte-americano, instalada “em um vilarejo chamado Santo Aleixo, distante da fazenda São José apenas duas léguas”. Infelizmente nossa visitante não prossegue na descrição dessa manufatura.
Lembramos que realmente após a fundação de Petrópolis, e esgotado o trabalho nas estradas, o colono via-se obrigado a exercer inúmeras outras atividades adaptados a sua habilidade manual: carpinteiro, pedreiro, pintor etc, se oferecendo nas raras obras públicas ou privadas que se iniciavam na região, além da concorrência do grande número de “profissionais”. Lavouras e os poucos estabelecimentos fabris da periferia também absorviam essa mão de obra disponível.
As fábricas construídas ao pé da serra na região de Magé, envolvidas na produção de cerâmica e tecidos, contribuíram de forma decisiva para a sobrevivência desses colonos. Soares de Souza na revista do IHGB afirma ser grande a quantidade de alemães que aparecem trabalhando nos arredores de Petrópolis, “e até na fábrica de Santo Aleixo, onde em 1849, de 116 operários ali existentes, 84 eram alemães”.
O FEITICEIRO
Não podemos deixar de comentar essa figura das mais importantes nas comunidades escravas registrada por nossa visitante. Homem alto, esguio, cabeça branca dizendo-se ter mais de noventa anos. “Estava envolto numa capa raiada, trazia uma espécie de alforje pendurado de lado e tinha um bastão na mão. Seu rosto era sério e pensativo”. Foi chamado para atender a um escravo picado de cobra trazido do canavial numa carroça, e vomitando sangue.
Ao aproximar-se do enfermo, fê-lo sorver “uma infusão de plantas que só ele tinha o segredo, e afirmou que curaria o negro, com a condição, porém, de que nenhuma mulher entrasse durante sete dias, no quarto daquele de quem cuidava; sem isso não respondia por nada”. As recomendações foram seguidas e o negro ficou curado.
Ao procurar o feiticeiro para saber quais as plantas havia empregado para o tratamento de uma picada tão venenosa transmitida pela cobra jararaca, esse limitou-se a dizer que era segredo, seguindo-se o diálogo:
- “Por que não revelas aos outros ?
- Eu cuido deles enquanto estão doentes, é o bastante.
- Mas, quando morreres ?
- Tanto pior para eles; se fossem bons comigo, eu lhes diria muitos segredos que sei, mas fogem de mim e ensinam seus filhos a me temer. Levarei meus segredos comigo”.
SEGUNDA VISITA À FAZENDA
Quatro anos depois a família voltou à fazenda conduzindo dois filhos: Paul, com doze anos e Maurice, com dezesseis meses ainda sendo amamentado. Dessa vez, sem o auxílio do anfitrião para conduzi-los desde o Porto da Piedade, valeram-se dos serviços de um mulato chamado Fernando. “Um tipo dos mais notáveis, que tocava guitarra e se perfumava da cabeça aos pés com água de colônia quando estava a meu serviço”.
A marcha lenta devido a dificuldade em transportar a cavalo e a pé as crianças, ora no colo, ora nas costas do mulato, fizera com que a tarde chegasse quando ainda tinham três horas para caminhar. Temendo os perigos da noite que estariam expostos na floresta, resolveram seguir o conselho do pagem e tomaram o desvio do caminho para pernoitarem em outra fazenda, pertencente a “Viscondessa de P. e G.”.
O feitor recebeu-os com hospitalidade, providenciando um bom quarto “onde tive a alegria de ver meus dois filhos adormecidos cada um em uma cama, em vez de expostos, na floresta, a toda espécie de perigos”. Após a refeição e recolherem-se aos aposentos, Adéle teve uma surpresa: a porta que ficara aberta para a varanda que envolvia a casa, foi transformada em passarela de mulatas exibindo saias coloridas, lançando olhares maliciosos ao seu marido.
Ao fechar a porta, a escuridão obrigou a hóspede a pedir uma lamparina a uma negra que prestava serviços na casa. Foi-lhe trazida uma tocha de resina “cuja fumaça nos teria sufocado se não houvéssemos mantido escancaradas as portas internas do aposento”. Entretanto aquela tênue luz fumacenta foi-lhe útil para vigiar os “enormes ratos” que invadiram o aposento em busca dos resíduos da ceia, mantendo-a acordada apesar do cansaço, vigiando as camas das crianças ante a ameaça dos roedores.
Adéle registrou a presença nessa fazenda de uma jovem mulher branca, descalça, em desalinho, e não hesitou em perguntar pela manhã, ao ser servida com uma tigela de leite, se era ela a mulher do feitor. Respondendo que sim, perguntou-a por que parecia tão triste.
- Sou bem infeliz senhora, respondeu ela.
- Não é a mulher do administrador?
- Para minha desgraça.
- Como?
- Ele me trata indignamente. Aquelas mulatas, acrescentou ela, é que são as verdadeiras senhoras da fazenda; por ela meu marido me cobre de ultrajes.
- Por que suporta isso?
- Meu marido me força a receber essas criaturas até em minha cama; e é lá, debaixo dos meus olhos, que lhes dá suas carícias.
- É horrível!
- Quando me recuso a isso, ele me bate e suas amantes me insultam.
- Como continua com ele? Abandone-o
- E como viveria?
- Trabalhando!. Uma mãe não deve tolerar que a ofendam diante dos filhos, para que eles a respeitem, faça-se respeitar.
A pobre mulher escutava-me com muita atenção, tentando compreender e abrindo grandes olhos espantados”.
Amanhecia. O sol dourava a relva molhada de sereno enquanto os cavalos eram encilhados. Adéle olhou aquela mulher que veio despedir-se na porteira junto com o feitor, suas mucamas e servos, notando um leve sorriso em seus lábios. A família afastou-se lentamente ao trote dos animais. Ao longe, acenando as mãos, ficaram as representações do povo brasileiro, moldando uma cultura com base social escravocrata, sustentando uma economia cujo ápice era o império, a igreja, o senhor de engenho e os escravos.
Compreendendo o sorriso da mulher do feitor, a francesa deixou registrado para a posteridade o início de uma liberdade que, ainda que tarde nasceria, e se espalharia um dia no rosto dos cativos, sedentos também de libertação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Samson – Adéle Toussaint, - “Uma Parisiense no Brasil” Ed. Capivara Rio de Janeiro - 2003
Gardner, George – “Viagens no Brasil” – São Paulo – 1942
Souza, Soares de – “A Estrada da Estrela e os Colonos Alemães”. Revista do IHGB – volume 322 – Jan/Mar 1979
Revisão: Prof. Arnaldo José de Castro