Crônicas de conteúdo histórico-cultural sobre artistas, personalidades, políticos e acontecimentos em Duque de Caxias, RJ, projeto concebido pelos jornalistas Alberto Marques e Josué Cardoso.

domingo, dezembro 14, 2014

ARMANDA ÁLVARO ALBERTO E A ESCOLA REGIONAL DE MERITY                                                            Guilherme Peres

Naquela manhã do ano de 1920, uma locomotiva puxando alguns carros de passageiros envolvidos no vapor, parou na pequena estação de Merity, hoje Duque de Caxias. Dentre os poucos passageiros que desembarcaram estava uma jovem bem vestida, que olhava curiosa as casas aninhadas ao longo da via férrea. A visita seria breve. Seu pai, tenente da Marinha, Álvaro Alberto, a convidara para conhecer a fábrica de explosivos “Rupturita”, funcionando em uns barracões a poucas quadras afastada do centro, onde hoje se ergue o edifício “Giupponi”. 

Ao chegar àquele lugarejo, ficou sensibilizada com a população marginalizada que revoava em torno do pequeno comércio ali estabelecido. Crianças pedintes, jovens em andrajos, alcoólatras, mulheres e homens envelhecidos prematuramente no trabalho diário do corte de lenha para abastecer os balões de carvão que salpicavam ao longo da via férrea.

Armanda Álvaro Alberto, professora, 28 anos, nascida no Rio de Janeiro, filha de um médico, Dr. Álvaro Alberto, professor e homem de ciência, trazia uma experiência em 1919 na região de Angra dos Reis. Durante sua permanência ali, iniciou o ensino para cerca de 50 crianças, filhos de pescadores “para as quais não existiam escolas em toda a redondeza”, diz a própria D. Armanda, “adolescentes mesmo, que não sabiam sequer dar nomes às cores, salvo as das frutas verdes e maduras, que ignoravam sua condição de brasileiros”.
“Aquela escola ao ar livre, à sombra dos bambus, sem mobiliário, se foi a escola que iniciou alguns brasileirinhos foi também a nossa própria escola, a que preparou essa outra, a de Merity”, diz D. Armanda.                  
Em um barracão doado por Bernardino Jorge, pai de D. Ondina Jorge Romeiro, esposa do Dr. Romeiro Júnior, que se notabilizou como médico e político no município, situado no alto de um morro, D. Armanda instalou a Escola Proletária Merity. O jornal “Tópico” editado em Duque de Caxias, datado de 23 de agosto de 1958, em reportagem de página inteira, intitulada “Uma Instituição que Honra a Cidade”, exibe uma fotografia desse barracão sem paredes onde se vêem os alunos sentados nos bancos e a cobertura de sapé. Ao fundo uma casa humilde coberta com telhas de canal.
Estação de Caxias no Estado Novo
 Inaugurada a 13 de fevereiro de 1921, foi a “célula mater da Fundação Álvaro Alberto”. No discurso apresentado pelo Dr. Belizário Pena na “Primeira. Conferência Nacional de Educação” realizada em Curitiba em dezembro de 1927, D. Armanda assim se expressou: “sem um só programa escrito, tomou desde o começo, no entanto, a feição de um lar-escola, embora externato com número limitado de alunos, a quem não se dão notas, prêmios ou castigos. A orientação geral apresentava-se resumida em quatro cartazes com os dizeres: Saúde – Alegria – Trabalho – Solidariedade”.
 Anexo à escola foi fundada a Biblioteca Euclides da Cunha e organizado um museu “com contribuições trazidas pelos alunos, da natureza local”, todos mantidos por um grupo de amigos da fundadora e pela firma F. Venâncio & Cia. (Explosivos Rupturita), da qual nasceu também um time de futebol, o “Rupturita Futebol Club” composto de operários da própria fábrica.
Desde o início, dona Armanda havia planejado dar aulas noturnas para os operários da fábrica de Rupturita. Entretanto, as dificuldades encontradas esbarravam na falta do professor e a ausência de luz elétrica que, naqueles idos de 22, ainda era uma esperança; “É questão de tempo”, diz D. Armanda, “desde que a luz elétrica está a chegar”. 
 Em seu relatório no final do primeiro ano letivo, dona Armanda registra fatos curiosos em relação aos alunos. A modificação do horário das aulas no próximo ano “será das dez da manhã às duas da tarde”, justificando que muitas crianças precisavam prestar serviço em casa, já que era rotina a excessiva ausência por ter que “tomarem conta da casa”, “estarem sujos seus vestidos” ou “terem ido fazer lenha”. 

                                  ENDEMIAS
 As doenças também eram causas de ausência. Rodeada de regiões pantanosas onde proliferavam os mosquitos anofelinos, febres palustres motivavam a fraca assiduidade num universo de 40 alunos. “Em novembro, 17 alunos faltaram às aulas por esse motivo, num período de dois a sete dias cada um, ao lado do impaludismo, dos resfriamentos etc”, diz D. Armanda no final do primeiro ano letivo.    
 A partir de 1922, com a fundação da “Caixa Escolar Dr. Álvaro Alberto”, foi possível fazer visitas domiciliares periódicas às famílias dos alunos mais carentes, prestando-lhes assistência médica, com orientação sobre limpeza, higiene, alimentação e a valorização da vida instituindo o “1º. Concurso de Janelas Floridas”. “As crianças chegavam pela manhã” diz a prof. Maria José, ex-aluna e colaboradora de d. Armanda, “e já encontravam um tabuleiro de angu doce e um latão cheio de mate, que lhes eram oferecido”, surgindo daí o apelido carinhoso: “Mate com Angu”. A escola era alcançada por uma trilha coleando entre o capim. “O barro escorregadio dificultava a subida em dias de chuva”, o que era compensado na chegada, pelo visual da imensa buganvília florida no portão.
“Uma das mais importantes criações de dona Armanda na Escola Regional de Meriti foi o “Círculo de Mães”, continua a profª. Maria José, “onde os alunos e as mães aprendiam trabalhos manuais e recebiam noções de higiene. Para isso ela distribuía com os participantes do curso, sabonetes, pente fino (nesse tempo havia muito piolho), mercúrio e tamancos. Insistia no banho diário com as pessoas e que as crianças usassem lencinhos para suar o nariz. Os alunos ela chamava “meus passarinhos”. Era incapaz de aborrecer-se com eles”.  

                                   NOVO PRÉDIO
Com a transformação da “Caixa Escolar” em Fundação Álvaro Alberto mantenedora da Escola, da biblioteca e do museu, a escola em 1924 passou a chamar-se Escola Regional de Merity, lançando um ano depois, a pedra fundamental para construção do prédio próprio, no amplo terreno doado pelo Dr. Bernardino Jorge e o Sr. Manoel Vieira (40 x 50), sob o projeto do arquiteto Lúcio Costa.
Sede da escola o projetado pelo recém
formado arquiteto Lúcio Costa
Nascido na França em 1902, filho de pais brasileiros que exerciam atividades diplomáticas, Lúcio Costa estudou as primeiras letras na Europa, vindo formar-se em arquitetura pela Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Amigo de D. Armanda aceitou o convite para elaborar o projeto de construção da Escola, o que fez gratuitamente. 
 Erguido com donativos em dinheiro e material de construção “angariados pela” Campanha de Nossa Casa” na então Capital Federal. O município de Nova Iguaçu ofertou 500$000 (quinhentos mil réis), o único dinheiro do governo recebido pela Escola”, (diz Custódio de Aquino), sendo entregue ainda inacabada à comunidade em 1928.
Infelizmente ao longo dos anos, com os processos de reformas e ampliação, teve seu projeto original de linha simples em estilo rural descaracterizado, perdendo assim a Baixada Fluminense a oportunidade de possuir em sua área, o único exemplar arquitetônico elaborado pelo famoso arquiteto.   
Vencida mais essa etapa de sua luta a favor do ensino gratuito, D. Armanda assim se manifestava: 
       “Pretendemos, sim, caminhar passo a passo, de acordo com os recursos que de que formos dispondo. A base material da obra está aí...Agora...Um símbolo...encontrado, e de pronto bem interpretado pelas crianças, faz pouco tempo, numa excursão, exprimirá melhor do que a minha pobre palavra. 
       Era um formigueiro em plena, em ordenada atividade. O grupo de alunos parado, observando. De repente, a professora bate de leve com uma varinha no formigueiro, lançado pânico entre os insetos. Mas não se deu um “salve-se quem puder”! Cada formiga adulta, ao fugir, apanhava primeiro na boca uma larva ou uma ninfa, na ânsia de salvar os pequeninos de sua comunidade. Evidentemente é este o mesmo mistério sentimento que anima quantos trabalham pela Escola Regional de Meriti”. (1)
               Antigas colegas do Colégio Jacobina se revezavam na coleta de donativos angariados com pessoas e instituições, participando também a Liga Feminina Contra o Analfabetismo e a Associação Cristã Feminina, divulgando que essas doações não tinham cunho caritativo, e sim uma tomada de consciência da sociedade contra o abandono em que se encontrava o ensino público na área da alfabetização.
            “O trabalho de Armanda traduziu um novo olhar para a criança num momento de valorização social da infância. Ela deixava de ser vista como um adulto em miniatura passando a ser considerada em sua especialidade. Em 1921, quando a escola começou a funcionar, resultava muito mais dessa compreensão e do entusiasmo pela educação, do que de um projeto específico que se desejasse colocar em prática. O objetivo, no entanto, era claro: promover a educação integral. Lourenço Filho chamou a atenção para a independência intelectual de Armanda, característica que permitiu a singularização de sua obra”. 
Abandonando os métodos do ensino convencional, D. Armanda usava uma nova forma de lidar com os alunos. Respeitando sua realidade sócia econômica, a educação era dirigida em forma de liberdade, porém, associando-se às famílias das crianças, delegava também para eles, a responsabilidade de conceder seu tempo de recreação, higiene e deveres.      
Sem nenhum auxílio oficial, a Escola Regional de Merity nasceu e cresceu graças ao trabalho abnegado de um grupo de amigos liderado por D. Armanda, recebendo prestimosos auxílios que nunca faltaram desde o início: seu irmão almirante Álvaro Alberto e Francisco Venâncio Filho. Seguindo-se Belisário Pena, Corina Barreiro, Heitor Lira, Coriolano Martins, Otávio Veiga e o jovem professor Edgard Sussekind de Mendonça, que se tornaria mais tarde seu esposo, todos pertencentes à Associação Brasileira de Educação em apoio pedagógico à “Escola Nova”, baseada na pedagogia Montessoriana criada na Itália por Maria Montessore, e aplicada na Escola, adaptada às condições sociais brasileiras. “Aprender a fazer, fazendo”, eliminando-se competições tão presentes na sociedade capitalista. 

                                      PROGRESSO
Ainda em 1928, novas realizações vieram melhorar as condições físicas da região, com a inauguração da nova estrada Rio-Petrópolis cortando o centro do Distrito, e a construção da ponte de acesso sobre o rio Meriti, completava com a via férrea, a ligação definitiva ao antigo Distrito Federal. Acompanhados das professoras, os alunos dessa escola fizeram-se presentes ao ato festivo organizado pelo povo, recebendo naquela ocasião, a promessa do governo quanto à chegada da água encanada para o próximo ano. Promessa não cumprida, e contornada com ajuda da comunidade na abertura de um novo poço mais profundo. O combate à saúva era preocupação constante, pois a destruição das hortas e jardins trazia desânimo ao trabalho de professores e alunos.
O início dos anos trinta encontrou Getúlio Vargas no poder. Seu interventor no Rio de Janeiro, Ary Parreiras, tomou conhecimento do trabalho realizado na Escola Regional de Merity, nomeando em abril de 1932 duas professoras para ali estagiarem, e levarem a prática do ensino rural às escolas públicas.   
Também nesse mesmo ano foi saudada a chegada da água encanada, junto com a reforma que o prédio exigia a expensas do Dr. Flávio Lyra. “Finalmente o combate às saúvas, com o auxílio do Horto Frutícula da Penha, novas mudas puderam ser plantadas, reconstituindo o “Calendário da Árvores Floridas”. Além de ser iniciada a criação de galinhas”, diz Ângela Machado em sua monografia: “A Escola Regional de Meriti”.     
Bem relacionada no Rio de Janeiro, dona Armanda levava frequentemente pessoas ilustres dos meios artísticos e intelectuais para conhecerem a Escola. “Cada um plantava uma árvore”, diz ainda a profª. Maria José, “Entre as muitas personalidades que subiram o morro para ver o trabalho que ela realizava com meninos pobres, de duas me recordo muito bem, plantaram árvores e retornavam sempre: Roquette Pinto e o professor Lourenço Filho”.
Em 1934, com a chegada da luz elétrica, novo ânimo animou aquele empreendimento, com a instalação de um motor na oficina de carpintaria. Junto com um projetor de cinema (Kodascópio), oferecido pelo Dr. Roquette Pinto, que exibia semanalmente filmes educacionais fornecido pelo Instituto Nacional do Cinema Educativo, a Escola também recebeu um rádio.
Médico, antropólogo, etnólogo e professor, Edgard Roquette Pinto é considerado o pai da radiodifusão brasileira. Junto com Henrique Morize, ambos criadores e dirigentes da Academia Brasileira de Ciências, fundaram a primeira emissora do Brasil: a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro.
Lutou para que os equipamentos de radiotelefonia instalados na Feira Internacional de 1922 no Rio de Janeiro, para comemorar o centenário da independência não voltasse para os Estados Unidos. Convicto do valor educativo e cultural do sistema foi ao ar no dia 1º. de maio de 1923 sob sua direção: a Rádio Sociedade. Explorando sua potencialidade para a instrução e educação, serviu de referência para várias emissoras que surgiram pelo país com o título de “educadora” até 1932, quando através de um decreto federal criou-se o modelo de radiodifusão comercial que predominou desde então.    
Outro amigo da Escola era o professor Manoel Bergstrom Lourenço Filho, educador e escritor brasileiro nascido em São Paulo em 1897 onde, depois de formado, organizou o ensino normal e profissional desse Estado. Mudando-se para o Rio de Janeiro, planejou e estruturou as atividades do Instituto de Educação, dirigindo mais tarde o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Deixou alguns trabalhos publicados: “Testes” (1933) “Tendências da Educação Brasileira” (1940); “Pedagogia de Rui Barbosa” (1954) e livros de literatura infantil: “Histórias do Tio Damião” (1946); “Pedrinho” (1953).     
“Além da educação gratuita”, diz Custódio de Aquino, acompanhante do trabalho de D. Armanda desde o início, em artigo escrito para o jornal “Folha da Cidade”, nos trinta anos de emancipação do município “a Escola Regional de Meriti fornecia merenda, calçados e assistência médica; promovia campanha pelo saneamento através de conferências populares, sempre realizadas na sala do cinema local, proferidas quase todas pelo Dr. Belizário Pena – Apóstolo do Saneamento Rural”. Esse cinema a que Custódio se refere, era com certeza o “Cinema Merity”, o único que existia na Cidade, cujo prédio fica próximo à Escola, na Av. Duque de Caxias, transformado na década de cinquenta em um Hospital Municipal, e onde hoje funciona um supermercado.     

                                      REPRESSÃO
Foram muitas as decepções sofridas por dona Armanda. Vítima de perseguições políticas injustas no governo Getúlio Vargas, foi presa em dezembro de 1935 junto com seu marido, o Prof. Sussekind de Mendonça e com as dirigentes da União Feminina do Brasil, Maria Werneck e Eugênia Álvaro Moreira, e várias personalidades militantes políticas do mundo acadêmico e intelectual, entre as quais Olga Benário, mulher do líder comunista Luiz Carlos prestes. O ”crime” de preocupar-se com o povo era considerado subversivo. “Mesmo na prisão pedia que lhes mandassem os cadernos de seus passarinhos”, que era como tratava carinhosamente seus alunos, que acreditavam estar doente durante sua ausência.  
Ainda nesse período, escrevia cartas a eles dirigidas: 
“Rio de Janeiro, 1 de março de 1937

Como não posso ir hoje aí para receber vocês todos no dia da reabertura da nossa Escola, ao menos em pensamento quero estar perto de vocês.
Sei que D. Zulmira e D. Dulce vão fazer tudo para que vocês não sintam a minha falta.
E sei que vocês também vão fazer um esforço muito grande para trabalhar, para estudar, para brincar, para viver na Escola como se eu fosse aparecer de um momento para o outro e abrir os braços, dizendo o que sempre digo quando chego aí: Bom dia meus passarinhos!
Meus queridos: alunos não há de custar muito a chegar o dia em que vocês vão me ver de novo. Enquanto esse dia não chega, quero ter a certeza de que vocês se lembram de mim: quero receber cadernos com exercícios feitos por vocês, todas as vezes que o professor Edgar for dar aula aí.
Lembre-se mais uma vez que em nossa escola todos os alunos são irmãos, brancos pretos e mulatos; quero ver todos trabalhando juntos, ajudando-se um ao outro, brincando sem brigar.
Tudo que vocês quiserem de mim, é só me pedir por carta, que para vocês faço com alegria o que é possível fazer. Que cada semana um aluno, ou mais de um, me escreva, contando o que se passa por aí: Excursões jogos. Comissão de cada um, doenças etc.
Escutem: organizem as comissões de trabalho muito direitinho, por eleição. Só podem votar os alunos de 10 anos em diante. Os menores podem ser votados, porém não podem votar. Muito cuidado com o museu, com os livros, com a vitrola. E o nosso jardim? As nossas árvores de frutas? As nossas flores?
Para as mães do círculo de mães e para todas as mães dos meus alunos mando um abraço de amiga.
Para vocês minhas crianças, todo o carinho de sua professora muito amiga.                                                                                              Armanda.                                                                                                                       
    
                    SANEAMENTO E AMPLIAÇÃO                                                                                                                           
Os anos quarenta foram férteis para a Escola. A Diretoria de Obras e Saneamento, cujo diretor em 1944 era o engenheiro Hildebrando de Araújo Góis, mandou abrir a rua dando melhor acesso à escola e capinar periodicamente o matagal que vicejava nas encostas. Elogiado por dona Armanda em um de seus registros, assinala que “dentre as campanhas em que se tem empenhado a Escola em favor da comunidade, certamente a do saneamento é a mais importante. Este ano satisfez-nos essa aspiração – a maior do povo meritiense – a Diretoria de Saneamento Rural”.
Em 1946 comemorando o Jubileu de Prata, inaugurou-se com a varanda do prédio que abriga a Escola o pavilhão da biblioteca, a oficina de trabalhos manuais, e a Rua Belizário Pena recebeu uma placa com essa justa homenagem, sendo calçada em 1950, pelo então prefeito Gastão Reis. Anteriormente denominada Rua Santos Dumont, por sugestão da própria Dona Armanda.  
 Inserido em sua monografia a “Escola Regional de Meriti”, a Professora Ângela da Conceição nos mostra um texto original em manuscrito, que fez parte do programa das festividades do dia 21 de abril do ano de 1947, realizadas na Escola. Após a abertura da alvorada com o canto do Hino Nacional, falou sobre a data o Dr. Edgard Sussekind de Mendonça, como presidente de honra do Centro Cívico. Seguiu-se a leitura do texto da sentença condenatória de Tiradentes, inauguração do retrato do patrono do Centro, José Bonifácio de Andrada e Silva, distribuição de doces etc. Dentre os presentes identificados pela assinatura, destacamos encabeçando a lista: Abdias Rodrigues, Solano Trindade, o poeta que viveu alguns anos nessa cidade e seguindo-se a de D. Armanda Álvaro Alberto, inúmeros visitantes.
A primeira subvenção do Governo Fluminense deu-se na festa dos trinta anos, quando Roberto Silveira, Secretário do Interior em visita à Escola, ofereceu Cr$ 10.000,00 do Orçamento Estadual, seguido na promessa pelos vereadores Waldir Medeiros e Zulmar Batista que submeteram um projeto ao plenário, e aprovado (o primeiro do Município) oferecendo uma subvenção de Cr$ 20.000,00, recebida integralmente no primeiro mês, a metade desse valor no segundo mês e no mês seguinte, cortado do orçamento.
Mais uma vez sem nenhuma ajuda do governo, “a Escola conseguiu terminar seu prédio atual de dois pavimentos, com amplas dependências. O mobiliário de suas instalações foi oferecido pelos moradores de Duque de Caxias, numa campanha organizada por D. Martha Ignês Rossi, senhor Albino Vaz Teixeira com a colaboração do jornal “Folha da Cidade”, segundo o jornal “Tópico” de 23/08/58.
 Com inauguração festiva no dia 18 de setembro de 1955, “marcada pela presença de muitos convidados e amigos, entre eles os professores Zilda Farriá e Luiz Alves de Mattos, da Associação Brasileira de Educação; Sra. Dina Venâncio Filho, da Associação Cristã Feminina; Sra. Heloisa Medeiros, Liga Pró-Fraternidade; Sr. José Giupponi, do Clube dos Quinhentos, em Caxias; Sr. Plínio Armando Baptista, da Congregação Mariana; Sr. Santos Lemos, do Jornal Luta Democrática; Sra. Gilda Sussekind de Mendonça e o professor Ovídio Gouveia da Cunha”.       
O pavilhão da Biblioteca Euclides da Cunha assim como a Oficina de Trabalhos Manuais Heitor Lyra, que passou a funcionar num prédio anexo, foi valorizada com a chegada do saudoso José Montes, professor de marcenaria e entalhador das oficinas Leandro Martins, que permaneceria fiel a Escola até 2003, quando uma doença ceifou-lhe a vida.  
Estive presente a esse evento aceitando o convite do Dr. Ruyter Poubel. Jovem estudante escrevia uma crônica semanal no jornal “Folha da Cidade”, e apesar da memória me falhar um pouco, lembro-me de ter encontrado a Escola festiva como uma adolescente no dia de seu aniversário. A figura de D. Armanda, com óculos de lentes grossas e vestido florido era envolvida por todos. Dirigi-me a ela me identificando e recebendo carinhosa atenção. Apesar da idade, mantinha nos lábios finos um baton carmim, que realçava seu sorriso e irradiava uma simpatia que até hoje se mantém em minhas lembranças.

                                 ECOLINHA DE ARTE
Vilma, irmã da professora Olga Teira, Barboza
Leite, Josias, Menezes, Guilherme, e Nélio
Menezes, ao término de uma aula na
Escolinha de Arte, que funcionava aos
 domingos pela manhã no "Mate-com-Angu"
.
A Escolinha de Arte iniciada em 1957 e que permaneceu em atividade quase dois anos, dirigida pelo artista plástico Barboza Leite, reunia aos domingos pela manhã, inúmeras crianças que se espalhavam em mesas ao ar livre, agitando pincéis com plena liberdade de criação. Participei a convite de Barboza como seu “assessor”, dissolvendo e distribuindo tintas, selecionando trabalhos etc., recebendo freqüentemente visitas de incentivo dos amigos: Josias Muniz, Newton Menezes, Custódio de Aquino, Waldair José da Costa, Plínio Baptista, Alberto Marques, Nélio Menezes e outros.   
Plínio Armando Baptista, Nilton Menezes,
Waldair José, Alírio, Alberto Marques
e Guilherme Peres, fundadores
do movimento cultural "Grupo"
Em 24 de fevereiro de 1958, uma grande perda entristeceu os amigos da Escola. Edgar Sussekind de Mendonça falecia deixado uma lacuna difícil de ser preenchida. O jornal “Tópico” na edição de 10 de maio daquele ano dedicou-lhe um necrológio afirmando que “perdemos mais que um mestre e escritor. Perdemos um amigo que compreendia e incentivava os moços... Caxias muito deve a este homem. Aí está a fundação Álvaro Alberto, mantenedora da Escola Regional de Meriti, que o tinha como secretário e principal colaborador. Assim Edgard Sussekind de Mendonça, que em vida foi além de professor do Instituto de Educação, membro da Academia Carioca de Letras, presidente do Grêmio Cultural Euclides da Cunha, colaborador do Instituto Nacional do Cinema Educativo, deixa entre os amigos e sua família uma profunda saudade”.   

                                                    DESPEDIDA
Em 1963, cansada e sem condições físicas para continuar o trabalho, dona Armanda resolveu doar a instituição ao Estado. Entretanto, as exigências burocráticas foram tantas que, em reunião, a Assembléia Geral Extraordinária dos sócios por unanimidade votou pela retirada da proposta, aprovando a doação para o Instituto Central do Povo.
Em sua festa de despedida no dia 15 de dezembro de 1963, quando ainda havia a esperança de sua aceitação na rede de ensino Estadual, a ex-aluna Raquel Solano Trindade, filha do poeta Solano Trindade, escolhida para proferir o discurso assim se expressou:
“E lhes peço, senhores representantes do Estado, quando dirigirem esta Escola, deixe-a como está: com esses móveis, com esses quadros, com o balanço e as flores daquelas árvores lá fora, com os concursos Monteiro Lobato, Euclides da Cunha, com as músicas de natal e São João.
Tornem a fazer a horta, o pomar, a sopa do meio dia feita pelos próprios alunos. Voltem ao antigo horário da Escola, de 9 às 17 horas. E então, senhores, assistirão a outros dois grandes milagres, o primeiro será ver uma geração de caxienses mais esclarecida, mais culta, mais trabalhadora. O segundo milagre é que vai dar nova vida a um coração cansado, que confiou nos senhores, Se os senhores fizerem isso, darão alegria e juventude ao coração desta grande mulher que é dona Armanda Álvaro Alberto”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
“Edgard Sussekind de Mendonça” – Jornal “Grupo” – 10\05\1958
“O Rádio Educativo no Brasil” -  Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro -  Série Memória – Volume 6 – 3\2003
Silva, Ângela da Conceição Machado da – “A Escola Regional de Meriti:  Uma Experiência Pioneira na Educação” – Monografia.      FEUDUC – 2002 - RJ       
Dutra, Maria José Trindade – “Lição de Mestre / Lição de Vida” Depoimento (Fragmento s\ identificação)
Aquino, Custódio – “Escola Regional de Meriti” “Folha da Cidade” - 1973 – Duque de Caxias
Morais, Dalva Lazaroni de – “Esboço Histórico Geográfico do Município de Duque de Caxias”. Arsgráfica -1978 RJ
“Mate com Angú” – Jornal “Grupo” – Junho 1957 – Duque de Caxias RJ
“Uma Instituição que Honra a Cidade” – Jornal “Tópico” – 23\08\1958 Duque de Caxias RJ
 (Fotos: Arquivo da Escola Armanda Alvaro Alberto e do Instituto Histórico da Câmara de Vereadores de Duque de Caxias)


quinta-feira, janeiro 05, 2012

BAIXADA CULTURAL

A NAU DOS INFELIZES

       TRAGÉDIA A BORDO DE UM NAVIO 
                 NEGREIRO BRASILEIRO

                                                                                                   
Senhor Deus dos desgraçados!
              Dizei-me vós, senhor Deus!
se é loucura... se é verdade 
tanto horror perante os céus?!
         Castro Alves em “Navio Negreiro”
           
Na manhã do dia 6 de setembro de 1842, uma belonave britânica de 26 canhões denominada  H.M.S .Cleópatra, adentrava a baia de Guanabara para uma escala de alguns dias destinados ao abastecimento. Sua missão nessa viagem era transportar o tenente-general sir William Gomm, que ia tomar posse como governador nas ilhas Maurício.
Ancorado próximo ao porto estava o barco “Malabar”, também de bandeira inglesa com 64 canhões, no qual fazia parte da tripulação o reverendo inglês Pascoe Grenfell Hill que por questões pessoais, pediu transferência para o “Cleópatra”.
Extasiado diante da imensidão da baia, o pastor registrou em seu diário: “A magnificência incomparável da baia do Rio, apertada na entrada, depois se abrindo em uma circunferência de dezessete léguas; suas cem ilhas; as montanhas que a envolvem mostrando cada mudança de contorno, coberta por uma riqueza de verdura do litoral até os cimos... misturando seus cumes com as nuvens; tudo isso compõe uma variedade e beleza que dificilmente cansa a vista. A cidade do lado esquerdo da entrada fica a quatro ou cinco milhas de distância da entrada”.
Ao desembarcar em frente ao Hotel Pharoux, comenta o grande movimento do cais, nos barcos que saíam ou chegavam levando e trazendo passageiros e víveres dos navios ancorados ao largo. Contemplou uma praça na qual observou uma grande profusão de frutas e verduras espalhadas pelo chão apregoadas por escravos.
 “Uma alegria cordial se misturam ao redor de um pequeno fogareiro de carvão onde eles fritam seus peixes ou cozinham sua raiz de mandioca e batata doce. O trabalho mais pesado que se vê na rua é o do carregador de café que leva sacos pesados na cabeça com seus passos acelerados, ao som de chaqualhantes substâncias dentro de uma bexiga que o chefe do grupo sacode e os outros acompanham cantando”.
Critica com veemência o Brasil por sua condição de país escravista, comentando que os casos de tortura e crueldade não eram divulgados pelos jornais do Rio de Janeiro, apenas anunciando casos de negros fugidos de uma jornada sobrecarregada de trabalho e subnutridos “dependendo dos caprichos do mau humor ou da avareza de seu dono”. Assistiu a um leilão de “mais ou menos vinte e cinco escravos de ambos os sexos, decentemente vestidos sentados em bancos atrás de uma mesa comprida, onde um de cada vez subia para ser melhor examinado pelos arrematadores. Um ar de obstinação parecia expressar seus sentimentos de degradação por estarem sendo postos à venda.”
No dia 14 de setembro daquele ano o “Cleópatra” levantou ferros singrando majestosamente em direção ao oceano Atlântico, buscando o continente africano. Ao iniciar essa viajem o pastor Hill não suspeitava que fosse testemunhar para a posteridade através de seu diário, talvez o mais contundente registro que temos conhecimento das condições degradantes de um navio brasileiro destinado ao transporte de escravos, após ser aprisionado pelos ingleses. Num tom seco e direto, o pastor narra a ventura desse barco “tumbeiro” denominado “Progresso”, que seguia para o Rio de Janeiro.    

                                                   O APRISIONAMENTO
Deixando as ilhas Maurício, o ‘Cleópatra” dirigiu-se à foz dos rios da região da costa de Moçambique, infestada de barcos negreiros. “Um novo interesse aqui se ligava a cada nau que fosse vista. O mercado de escravos na costa da África no presente momento, está quase confinado aos distritos de Quelimane e Sofala, tendo cessado no Porto, graças aos zelosos empenhos dos últimos e do presente governador”.
Ancorado fora da barra, no dia 23 de março de 1843 o comandante mandou uma barca subir o rio em direção a cidade de Quelimane, trazendo na volta uma carta do governador narrando que dois barcos brasileiros, o “Desengano” e o “Confidência”, foram capturados pelo brigue “H. M. Lily”, cuja tripulação composta de brasileiros e portugueses, apresentara-se a ele, tendo sido devolvidos aos seus respectivos países.
No dia 31, uma embarcação de dois mastros foi avistada ao longe “indo furtivamente ao longo da margem” tendo sido fracassada a tentativa do Cleópatra em contatá-la, alguns escaleres foram enviados “para vigiarem os pequenos rios ao longo da costa.”.
As obras de revitalização da área portuária do Rio revelaram o antigo cais do Valongo, onde desembarcavam os escravos vindos da Áfica.

Ao amanhecer do dia 12 de abril “ao voltarmos para Quelimare, o vigia no alto do mastro principal percebeu a sotavento uma embarcação que pela distância mal era visível; mas sua localização tendo sido considerada muito suspeita, a ordem foi de dirigir-se para ela”. Um vento forte seguido de chuva dificultava a perseguição à estranha embarcação. Após algum tempo o sol voltou a brilhar revelando próximo um “bergantim de linhas arrojadas como nós... desmastrado durante a ventania”. De repente o barco içou as velas pôs-se em fuga desfraldando a bandeira brasileira, em resposta a bandeira britânica que tremulada no mastro perseguidor. Posicionaram-se os homens da tripulação em torno aos canhões e ouviu-se o primeiro tiro de advertência em direção ao bergantim. Seguiu-se mais alguns outros, sendo ignorados pelo perseguido até que, perdendo distância, arriou as velas e aguardou aproximação de seu captor.
Um escaler conduziu um oficial para tomar posse do navio, e substituir a bandeira brasileira pela bandeira britânica, pois aparentemente não havia dúvidas quanto sua atividade de navio negreiro. Seguiu-se o capitão acompanhado do narrador deste diário e “um cirurgião para examinar o estado de saúde a bordo da presa”. 
A visão do quadro degradante que o pastor viu, mesmo em sua narrativa fria é horripilante. Negros nus e famintos se atropelavam no convés do navio arrebentando barricas de farinha, “a raiz da mandioca em pó; outros tendo quebrado os caixotes seguravam grandes pedaços de carne de porco e de boi; e alguns pegaram aves das gaiolas e as devoravam cruas”. Panos torcidos eram enfiados nos tonéis de aguardente, “um forte rum brasileiro do qual beberam em excesso”. Os gritos ensurdecedores de alegria foram ouvidos depois que toda a tripulação inglesa subiu a bordo para livrá-los das correntes de ferro, as quais muitos deles ainda estavam presos.
Após a tripulação de dezessete homens ser transferida para o barco inglês composto de três espanhóis e o restante de portugueses e brasileiros, foi avaliado a situação: tratava-se do navio brasileiro “Progresso”, deslocando cerca de 140 toneladas procedente de Paranaguá e seguia em direção ao Rio de Janeiro. Sua carga era composta de 447 negros. “Desses 189 eram homens, poucos, no entanto, passando dos vinte anos; 45 mulheres e 213 meninos”. Havia um grande número de doentes a bordo, suspeitando-se que a princípio fosse de 25, mais tarde descobriu-se uma quantidade maior.
Segundo a tripulação o comandante havia perecido afogado no porto de embarque. Tempos depois se descobriu que ele permaneceu escondido entre seus subordinados para fugir ao rigor das leis inglesas. Dois espanhóis e um português voltaram para o barco “Progresso” com a tarefa de cozinharem para os negros, juntamente com nove marinheiros, um tenente, um mestre quarteleiro, um contramestre e o pastor Hill, autor do diário do qual estamos seguindo seu roteiro.

                                     A VOLTA PARA A ÁFRICA
Ao longo do tombadilho o pastor descreve os negros recentemente libertados, dormindo, enquanto a nave desliza suavemente à brisa do mar calmo. Corpos esqueléticos, uns sobre os outros, disputam o pequeno espaço. De repente, “o céu começou a se encher de nuvens e um nevoeiro espalhou-se pelo horizonte para barlavento”.
Os fortes ventos seguidos de chuva provocaram as cenas de horror que se seguiram, com os marinheiros querendo chegar até as cordas para recolher as velas, e a pisotearem os negros que se alvoroçaram aos gritos acompanhados da ordem de mandar todos descer para o porão. Durante a noite, o calor sufocante agitou “quatrocentos infelizes seres humanos apertados em um porão com doze jardas de comprimento... rapidamente começaram a fazer um esforço para voltar ao ar livre” através das escotilhas fechadas em cima deles.
“A única passagem de ar, o calor sufocante do porão, e, talvez o pânico da situação inusitada fez com eles pressionassem... se acumularam nas grades, e agarravam-se a ela lutando por ar. Mas com isso barravam completamente a sua entrada. Posso afirmar sem exagero que os gritos, o calor “a fumaça do tormento deles” que subia não pode ser comparadas a nada desse mundo. Um dos espanhóis avisou-se que a conseqüência disso seria de muitas mortes.
Pela manhã, cinqüenta e quatro corpos de homens, mulheres e crianças foram conduzidos para o tombadilho e jogados ao mar. “Era uma cena horrorosa vê-los passar um a um, os membros enrijecidos cobertos de sangue e de sujeira” Outros estavam feridos ou fracos demais para se erguer. Haviam sidos pisoteados. “Alguns ainda tremendo foram deitados no tombadilho para morrer, água salgada eram jogada sobre eles para revivê-los, e um pouco de água entornada em suas bocas”.
A refeição daquele dia consistia de farinha e água, “quase metade de meio litro que eles agarravam com inconcebível avidez... suas gargantas deviam estar ressecadas pelos choros e gritos que vararam a noite adentro”.    
Na véspera de Páscoa, o pastor parece desabafar diante de tanta degradação: “O mundo não consegue apresentar um espetáculo mais chocante da desgraça humana do que esse nosso navio apresenta. Parece que uma cena tão angustiante possa ser testemunhada sem causar um efeito prejudicial no espectador”. Depois familiarizando-se, ele vai em certo grau insensibilizando seus sentimentos.
Dia de Páscoa, domingo, 16 de abril. Avistou-se o “Cleópatra” com sinais de que queria se comunicar, sendo feito a aproximação. Receberam “um velho português chamado Valerian, para ajudar a reparar nossas velas que eram velhas e fracas”, e um cirurgião assistente “que começou a examinar os doentes. A maioria dos casos era de disenteria e de ferimentos ulcerados. Um homem tinha uma profunda escara infeccionada causadas por chicotadas. Uma pobre criança de seis ou sete anos perdeu quase todo o dedo grande do pé comido por “niguas”, ou seja, bicho de pé”.

Na manhã de segunda feira, os meninos que anteriormente haviam sidos rejeitados à bordo do “Cleópatra” por suspeitas de varíola, finalmente foram aceitos cerca de cinqüenta, pois se tratava de “violenta espécie de coceira”. Acompanhados de víveres para alimentá-los, consistindo de “dois sacos de arroz, um de milho moído, uma boa quantidade de carne-seca... que só desse último artigo o “Progresso” carregava um estoque suficiente para alimentar os negros durante dois meses”, além de seiscentos sacos de feijão miúdo, guardado abaixo do tombadilho dos escravos, arroz inferior, farinha, e “22 enormes tonéis, cada uma comportando cinco ou seis barricas cada”.
Referindo-se ao depósito de provisões o pastor registra: “armários trancados cheios de cerveja comum e de cerveja preta forte; barris de vinho; licores de várias espécies; macarrão; vermiceli; tapioca da melhor qualidade; caixas de picles ingleses, cada uma contendo doze vidros; caixas de charutos; uva moscatel; tâmaras, amêndoas, nozes etc.etc. Os viveiros no tombadilho estão cheios de aves e patos e tem onze porcos”.
O “Cleópatra” afastou-se rapidamente dando o último adeus de despedida. Durante a jornada o espanhol que fazia parte da tripulação anterior em atividade no navio brasileiro “Progresso”, revelou ao pastor dados interessantes de sua vil profissão. Narrou que durante os “dois ou três meses”, em que ficaram à espera do embarque da carga humana na praia, os negros ficaram muito doentes, “Alguns deles tinham vindos de longe no interior e chegaram em condições deploráveis e cinqüenta foram rejeitados como incapacitados para viajar”. Curiosa a resposta do tripulante quando perguntado se acreditava no fim do tráfego de escravos, que cada vez mais era combatido pelas nações que assinaram um pacto para esse fim, “ele achava que no Brasil, onde havia grandes enseadas isoladas que facilitavam o contrabando, haveria uma grande dificuldade em suprimir o tráfego, embora se a autoridade do governo simpatizasse com a causa poderia fazer muito”.
Rugendas retratou o mercado de escravos no centro do Rio

O “Progresso” havia sido o quarto navio apreendido naquele ano. “Em Quelimane, oito ou nove navios pegam sua carga anualmente” continua o espanhol “e, calculando por baixo, com quinhentos escravos em cada um... agora nenhum escapa, é um trabalho para homens desesperados... Na costa leste os negros geralmente são pagos em dinheiro, às vezes em “fazendas”, algodão grosseiro a um custo mais ou menos de dezoito dólares por homem e doze por meninos. No Rio de Janeiro, seu valor estimativo é de 500 mil réis por homens, 400 mil réis por mulheres e 400 mil réis por meninos. Assim sendo uma carga de quinhentos escravos, a um preço vil, o lucro vai passar de 19.000 libras”.
Uma manhã um negro morreu e foi jogado ao mar. Seu corpo flutuou em torno do navio batendo contra o casco “de barriga para cima durante meia hora”. A tripulação ficou temerosa que algum tubarão pudesse alcançá-lo. Finalmente o cadáver se afastou para todo o sempre. O maior sofrimento dos negros era a sede. Com a água racionada eles sorviam as gotas de chuva que pingavam das velas. “Colam seus lábios nos mastros molhados e engatinham até as gaiolas das aves para compartilhar os alimentos”. Na hora da refeição, constando de feijão cozido com arroz, a comida era distribuída em tinas “ao redor das quais eles estão sentados em grupo de dez, e, a um sinal, começam a mergulhar suas mãos na mistura e com grande habilidade levam o conteúdo até suas bocas”.                                     
.Um tubarão de grande tamanho foi pescado pela guarnição e serviu de refeição para os negros que se arregalaram com alegria durante a refeição. Porém, antes de abrir o peixe, ficaram temerosos “de encontrar restos dos nossos camaradas falecidos”.
Uma febre estranha atacou seis homens da guarnição, inclusive o pastor. Manoel, o cozinheiro português, foi o primeiro acamar-se com delírios. “Nessas febres da costa da África é necessário não ficar acovardado; por que se alguém se acovarda, em quatro dias morre”. E foi o que aconteceu com Manoel. “O corpo foi costurado dentro de um saco, com um chumbo para fazê-lo afundar, depois foi trazido para a popa, onde os ingleses e os espanhóis esperavam, eu li o modelo de Serviço Fúnebre para ser usado no mar: “Entrego seu corpo com honras no mar, esperando pela sua ressurreição, quando o mar deverá entregar seus mortos e a vida do mundo ocorrer”.
No final de abril durante uma noite, todos acordaram com gritos ouvidos no convés dos escravos. Ao verificar o motivo, denunciaram: “estão roubando água”. Confirmada a denúncia, foram responsabilizados sete elementos como autores do furto. “O mal resultante dessa delinqüência não é só da água retirada e sim a sujeira que fica dos trapos que eles mergulham nos barris para tirar o líquido”. Pela manhã os acusados foram amarrados no convés “e cada um recebeu de quinze a vinte chibatadas: um espanhol, um inglês e um negro forte se revezavam na tarefa”.
Após vários dias de calmaria o “Progresso” velejava sereno, acompanhado de cardumes de toninhas com os marinheiros tentando arpoá-las. Em poucos momentos o céu encheu-se de  nuvens carregadas com os relâmpagos rasgando o horizonte, sinalizando o recolhimento das velas. Trovões rolaram acompanhando o vento e as ondas que varriam o convés. Os gritos dos negros recolhidos apressadamente ao porão, o ranger de cordas e do tabuado faziam crer que o navio estava prestes a se partir.
Ao se iniciar o mês de maio, o navio seguia sua rota em calmaria entrando num novo hemisfério. A estação fria se aproximava mantendo os negros aninhados no porão. “Os negros nus já estavam começando a tremer e a bater os dentes”, que aumentava a medida que o navio avançava para o norte. As noites eram geladas e em uma manhã “sete negros foram encontrados mortos e entre eles uma menina”. A morte estendia suas asas com mais calamidade sobre esses infelizes.
Em seu diário o pastor registra as cicatrizes de letras marcadas no peito e nos ombros dos negros, que segundo um português da guarnição, é para marcar as iniciais de seus respectivos donos. “Quando o navio chega ao Rio eles podem reconhecer suas propriedades” acrescentando que “a condição do negro é muito pior no Rio onde eles andam esfarrapados e maltratados “como um escravo” do que em Havana, onde às vezes está mais bem vestido do que muito branco”.
Nova tempestade colheu o “Progresso” com “vento violento acompanhado de chuva” ceifando mais vidas de negros recolhidos ao porão. Pela manhã: “três mortos foram as primeiras coisa que meus olhos viram no convés; um homem coberto por um cabo de corda, uma coisa horrível e repugnante; o pobre menino que sofria com bicho-de-pé e que agüentou seu sofrimento com muita paciência e uma menina, cujos dois olhos ontem estavam completamente fechados por causa de uma inflamação na cabeça. Suas vidas foram durante um tempo, uma carga pesada para eles e não poderiam se mais prolongadas, mas com certeza foram encurtadas pela inclemência do tempo”.                                
As tempestades se sucediam com freqüência. Ao entrarem nas zonas de turbulências com nuvens ameaçadoras, antecipava-se o recolhimento das velas e os negros eram recolhidos ao porão. “Rajadas se sucediam umas às outras misturando mar e ar em um lençol pulverizador, cegando os olhos do timoneiro. Ondas subindo altas, acima de nós, jogando para o céu as espumas de suas cristas e ameaçando engolir o navio a qualquer momento”. Cavalgando sobre as vagas e rangendo o madeirame, o velho brigue transportava em seu interior “os gritos agudos dos doentes através da escuridão da noite, subindo acima do barulho dos ventos e das ondas, pareciam as coisa mais tristes de todos os horrores desse infeliz navio”. 

Ao amanhecer a mesma rotina trágica: três corpos jaziam no convés para serem lançados no mar: “o de um homem e os de dois meninos, trazidos do porão para o convés”. O homem havia sido surrado por seus companheiros alguns dias antes, e naturalmente não agüentou a falta de ar no porão na noite anterior. Dentre as doenças dos negros que se manifestavam à bordo, “os casos de feridas ulceradas assumiam uma aparência tão horrível que eu agora mal consigo olhar. Esses pobres pacientes, também estão sem exceção, atacados de disenteria, da qual eles têm certeza que vão morrer mesmo se curados das feridas”. O estado de desnutrição era cada vez era evidente na aparência dos negros transportados pelo “Progresso”. “Um menino que estava a um estado que não se consegue conceber em um ser humano”, durante a administração de um remédio composto  de camomila, “Antonio o fez sentar para beber, quando sua cabeça caiu para frente e morreu nessa posição”.
Navegando numa região de calmaria, um horrível mau cheiro passou a exalar do porão impregnando todo o navio. A mistura das fezes e do suor dos negros doentes e esqueléticos que não podiam se locomover para o convés e permaneciam asfixiados num calor sufocante, faziam com que a tripulação se sentisse incomodada, “e na nossa cabine na popa é quase intolerável”.    
“Aparentemente nada se movia nem no ar nem no mar nem no céu, exceto os enormes albatrozes, com suas azas de dezesseis pés bem abertas, dando volta uma atrás da outra e, às vezes passando tão perto, que quase tocam a grinalda da popa na qual eu estava sentado”.
Ao entardecer sombras foram vistas no horizonte denunciando terras, confirmada ao amanhecer com o aparecimento dos pombos do Cabo, em conjunto com os albatrozes e várias velas que surgiam ao longe, suspeitando que fosse a “baia Plettemberg, entre a baia de Algoa e o Cabo, alguns negros apontam interessados e curiosos para lá, mas um grande número deles senta-se junto no convés, com suas cabeças descansando nos joelhos aparentemente em uma apatia total para tudo ao redor”.
A morte ceifaria naquela manhã mais três meninos. Seus corpos estendidos no convés era parte da rotina diária, “embora, durante os últimos sete dias os casos fatais tenham atingido uma média de quatro por dia”.
No dia 1º. de junho, o “Progresso” se aproximava da costa quando foram transportados do porão mais oito corpos, “e agora não podemos mais nos aventurar a joga-los ao mar como antes, porque as ondas podem leva-los para alguma praia desabitada da baia na qual entramos ontem à noite”. Na baia de São Simão, o nevoeiro desfeito deixou ver dezenas de mastros e velas de barcos que se confundiam ancorados ao largo.
Aproximando-se do cais, o navio lançou ferros, sendo logo visitado pelo fiscal sanitário. Em seguida o superintendente do Hospital Naval, também foi a bordo conduzido pelo pastor, já que eram velhos conhecidos, visitou o porão destinado aos escravos. “Por mais que ele estivesse acostumado a cenas de sofrimento, ele foi incapaz de suportar a vista, superando tudo o que ele podia conceber de miséria humana. Uma menina pequena chorava amargamente, presa entre as tábuas e lutando para libertar seus membros enfraquecidos, até que lhe deram assistência”.
As escavações para as obras na área portuária revelou o antigo cais do Valongo, que recebia os escravos vindos da África

Desembarcando no cais e após um descanso, o reverendo dirigiu-se abordo do “Isis” para  cumprimentar um velho conhecido: sir John Marchal. De volta para a terra resolveu fazer a última visita ao “Progresso”, onde encontrou mais seis corpos empilhados no convés junto aos oito do dia anterior esperando para serem enterrados na praia. Os mais saudáveis já tinham sido embarcados em vagões para a cidade do Cabo. Cada um dos que era liberado, diz o pastor em seu diário: “recebia um casaco novo e quente, calças, e eram colocados agasalhados em confortáveis vagões abertos... passei pelos negros e não os encontrei mais conformados com a mudança da situação... Cada mulher tinha um cobertor branco novo, além de roupas... responderam aos seus nomes, mas mostraram poucos sinais de alegria na ocasião. Dúvida e medo predominavam e seus semblantes pareciam aqueles das vítimas condenadas”.
Durante a limpeza do navio foi encontrado um menino preso nas taboas do porão em adiantado estado de putrefação. “Parte de uma das mãos tinha sido devoradas e um olho completamente roídos pelos ratos... os doentes que desembarcaram ainda são numerosos”.         
Após cinqüenta dias da viajem de volta ao continente africano, chegava ao fim um dos mais dramáticos depoimentos de fatos abomináveis que envergonham as relações humanas. O “Progresso”, navio brasileiro apreendido pela bandeira britânica com sua carga infame de 397 negros destinados ao Rio de Janeiro, chegava ao porto próximo à cidade do Cabo com 223 sobreviventes, reduzidos em 175 homens, mulheres e crianças que pereceram em condições degradantes.

                                                               POSFÁCIO
   Percorrendo o Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX, o viajante inglês GT. W. Freireyss registrou uma visita feita ao mercado do Valongo: “Basta entrar numa das espaçosas salas de um traficante na Capital, para ver uma porção de negros recém-chegados divertirem-se à moda do seu país, o que o traficante lhes permite por que sabe que a falta de movimento e a nostalgia lhes diminuem o infame lucro. Encontramos aí alguns centos de negros nus e rapados, diversos tantos na idade como no sexo, que formavam uma grande roda, batendo palmas com toda a força, acompanhadas com os pés e com um canto gritado e de três notas apenas”.
Após as primeiras visões desta degradação humana, Freireyss assinala que os navios chegavam com a quarta parte de sua carga doente, “enquanto outros que trazem consigo o gérmen da moléstia, sucumbem poucos dias depois da chegada”.

Muito já se escreveu sobre a história social do Brasil desde o processo colonial. O tráfico negreiro é um desses temas que enodoam seu relato, iniciando com o aprisionamento de uma população ordeira do interior do continente africano por tribos litorâneas e negociando seus irmãos com traficantes de nações européias. Famílias inteiras transformadas em escravos contribuíram durante mais de três séculos para o esplendor econômico dos impérios coloniais incluindo o britânico, que se travestiu de inquisidor do tráfego negreiro no século XIX por interesses econômicos.         
Escrevi esse relato resumindo o texto do livro: “Cinqüenta Dias a Bordo de um  Navio Negreiro”, transcrito do diário de bordo do reverendo Pascoe Grenfell Hill, garimpado no raríssimo acervo do bibliógrafo e acadêmico José Mindlin, traduzido por Marisa Murray e publicado recentemente pela  José Olímpio Editora, na coleção Baú de Histórias.

                                                                                                    Guilherme Peres

quinta-feira, setembro 29, 2011

BAIXADA CULTURAL

MARTA ROSSI – A MINEIRINHA
QUE DESCOBRIU DUQUE DE CAXIAS
Ouvida pela comissão de jornalistas e pesquisadores que participam do projeto “Tarde com História”, promovido pelo Instituto Histórico Câmara de Vereadores de Duque de Caxias, a professora aposentada e agora artista plástica Martha Rossi prestou um emocionado depoi
mento que fará parte dos arquivos do instituto, para posterior aproveitamento por pesquisadores da História de Duque de Caxias.
Marta Rossi nasceu, na verdade, em Niterói, de onde sua família se mudou para Ponte Nova, em Minas Gerais, quando ela estava com seis meses de nascida. Por isso, é conhecida entre os amigos como a mineirinha de Ponte Nova. Lá ela estudou desde as primeiras letras num colégio mantido por freiras, onde se formou professora aos l7 anos. Logo depois se casou e foi com o marido morar, primeiro, em Belo Horizonte, daí vindo para o Rio de Janeiro. Um tio dela tinha um sítio em Parada Angélica, onde ela conheceu uma professora, que apesar de não ser formalmente uma professora, mantinha uma escola rústica em sua casa. Martha Rossi se encantou com o empenho e a dedicação da professora e resolveu procurar o prefeito de Duque de Caxias, onde consegui o emprego pretendido. Era 1949 e o prefeito era Adolfo David. Ela foi trabalhar na Escola Municipal Gastão Reis, na Rua Petrópolis, bairro Corte Oito. Algum tempo depois, ela passou a trabalhar numa
escola que funcionava junto à Igreja Adventista, na Av. Duque de Caxias, no bairro Itatiaia. Ali ficou sabendo da existência da Escola Regional de Meriti, mais conhecida como “Mate com Angu”, que adotara o Método Montessori de ensino e foi a pioneira no antigo Estado do Rio a implantar o regime de horário integral e o fornecimento da merenda. Num dia inspirado, ela foi visitar a escola, onde conversou com a fundadora da instituição, a professora Armanda Álvaro Alberto, que a convidou para se juntar ao grupo que atendia a cerda de 200 alunos.
Em pouc
o tempo Martha Rossi se tornou uma peça fundamental na condução da “Regional”, fundada em 1921 como Escola Proletária de Meriti, que acaba de comemorar seus 90 anos de existência. Martha fala com entusiasmo do trabalho que realizou na “Regional de Meriti”, entre os quais a busca por parceiros para garantir a sopa que era servida aos alunos acompanhada por um copo de mate. De caderninho na mão, ela procurava os comerciantes do centro de Caxias em busca de doação, em especial, os mercadinhos, as quitandas e os açougues. Sempre cativante e espontânea, ela conseguia o compromisso da doação semanal de gêneros de primeira necessidade para a elaboração da sopa. Outro programa da “Regional” de grande sucesso era o concurso de “Janelas Floridas”, que visava orientar as mães dos alunos para a importância do cultivo das flores para enfeitar suas casas e, também, a limpeza dos quintais para a impedir a proliferação de animais que pudessem transmitir doenças, como ratos e morcegos. Numa época em que o termo ecologia ainda era desconhecido, a “Regional” já se preocupava em usar a educação como ferramenta importante para a preservação do meio ambiente. E para ajudar a educação, havia o Clube de Mães, que se reunia para ouvir palestras sobre os cuidados com a higiene pessoal e de suas residências, como forma de evitar doenças. E ainda aproveitava esses encontros para ensinar atividades comuns, como bordar, costurar e consertar roupas, experimentar receitas e descobrir a importância de usar os produtos da região, inclusive noções de como manter uma pequena horta no fundo de suas casas, que poderiam fornecer verduras fresquinhas a qualquer hora do dia.
Martha Rossi também não se esqueceu do papel importante de alguns colaboradores, como o professor José Montes, que montou uma marcenaria dentro da escola, onde ensinava como transformar um pedaço de maneira num utensílio, brinquedo ou te mesmo numa obra de arte, como era o caso das gravuras em relevo sobre madeira. Lembrou também do professor e artista plástico Barboza Lei (foto ao lado), que criou uma escol
inha de artes, que reunia os alunos da “Regional” para descobrirem, juntos, os segredos da paixão que sempre uniu pincéis, tintas e telas através dos Séculos. Outra iniciativa importante da “Regional” foi criar e manter ativa uma biblioteca, batizada de Euclides da Cunha, que, aos sábados, recebia dezenas de estudantes que lá iam buscar gratuitamente livros emprestados, que eram religiosamente devolvidos, ou realizar pesquisas, uma das principais ferramentas dos alunos da “Regional”. em busca de conhecimento, numa época em que não havia internet, muito menos rádio e televisão. Aliás, o primeiro e único projetor em oito milímetros, que exibia filmes educativos e comédias de um cinema ainda iniciante, foi uma doação do médico Edgar Roquete Pinto (1884-1954), fundador da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, atual Rádio MEC, a primeira emissora do Brasil, fato ocorrido em 1923. Naqueles tempos, para ser um ouvinte era preciso cadastrar-se junto à emissora, adquirindo um equipamento para ouvir a programação em casa
Como uma escola revolucionária, a “Regional” provocou natural resistências dos donos de escolas particulares e dos pequenos empresários da antiga Vila Meriti. Por conta disso, disseminou-se pela região o apelido pejorativo de “Mate com Angu”, que acabou se tornando uma marca registrada da escola, cujos alunos eram sempre os mais bem colocados nos concursos realizados em escolas do Rio de Janeiro para o ingresso no então Curso Ginasial, hoje absorvido pelo Ensino Fundamental.
Preocupada com a qualidade do aprendizado dos alunos, a professora Armanda Álvaro Alberto reuniu um grupo de ex-alunas do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, as primeiras professoras do ensino primário com cursos específicos para a Educação das crianças, encarregadas de avaliar as provas aplicadas pelas professoras da “Regional”. Além de uma deferência às novas professoras, esse processo mostrou-se uma formidável arma de propaganda da eficiência do Método Montessori, adotado pela “Regional”. mas recusados por outras instituições de ensino, que o consideravam muito perigoso do ponto de vista da política vigente no País. Por conta dessas e de outras “novidades”, Da. Armanda Álvaro Alberto acabou na cadeia, de onde enviava cartas aos seus alunos, sempre incentivando que eles se dedicassem aos estudos, se pretendiam um futuro melhor. Já na segunda década do Século XX, uma jovem nascida e criada no aristocrático bairro de Laranjeiras, que trocara a possibilidade de conseguir, pelo casamento, uma grande relevância na sociedade carioca, por implantar uma escola numa vila distante da civilização (o trem só chegou à Baixada em 1913), cujos habitantes andavam descalços, moravam em casas de pau-a-pique (taipa), criavam porcos e galinhas no fundo do quintal de suas casas, bebiam água de poço, eram vítimas da Malária e não sabiam ler ou escrever. A Escola Proletária de Meriti começou a funcionar embaixo das mangueiras que ocupavam um terreno próximo da estação ferroviário, que acabou sendo doado à “Regional” pelo médico e militante político Romeiro Jr., também perseguido por ser muito avançado em matéria de ideologia política, pois insistia em pesquisar ao invés de aceitar, como fato consumado, as idéias defendidas pela maioria dos políticos da época, numa República instaurada por um Monarquista menos de Meio Século antes da fundação da Escola Proletária de Meriti, a nossa “Mate com Angu, orgulho, até hoje, de alunos, ex-alunos e professores.
Armanda Álvaro Alberto aproveitava o círculo de amizades de seus pais para buscar ajuda para a “Regional”, acabou conhecendo um jovem arquiteto, que projetou a primeira sede da escola, em alvenaria (antes, as aulas eram embaixo das mangueiras). Esse jovem arquiteto acabou consagrado mundialmente ao ganhar o concurso para fazer o projeto da nova capital. Era um ainda desconhecido Lúcio Costa. Entre dezenas de personalidades que, ao longo do tempo, ajudaram a manter vivo o sonho de Armanda Álvaro Alberto, encontramos nomes como os do médico Roquette Pinto, do escritor e crítico literário Tristão de Ataíde (ou Alceu Amoroso Lima), do professor Edgar Sussekind de Mendonça (marido e parceiro de idéias de Da. Armanda), do educador Francisco Lourenço Filho, do sanitarista Belisário Pena, assistente de Oswaldo Cruz, do advogado Albino Vaz Teixeira, do líder sindical Custódio Aquino, do artista plástico e professor Francisco Barboza Leite e do professor e pensador Anísio Teixeira,
Foi nas teorias de Anísio Teixeira sobre educação integral do jovem que a professora Armanda Álvaro Alberto buscou inspiração para implantar a sua Escola Regional de Meriti. E a experiência aqui vivida pelo grupo de colaboradores da Escola foi tão importante, que, já em 1927, a instituição ganhava um voto de aplausos da I Conferência Nacional de Educação, realizada no Paraná. Baiano de Caetité, Anísio Teixeira nasceu em 12 de julho de 1900. Desde jovem, dedicara-se ao setor educacional, onde inspirou ou marcou com sua influência todas as reformas do ensino brasileiro desde a década de 20. Suas idéias muito influenciaram não só a educação brasileira, como o sistema educacional da América Latina Completou o curso secundário no Colégio dos Jesuítas, em Salvador, e o de Direito no Rio de Janeiro; graduando-se em Ciências de Educação pela Universidade de Colúmbia nos EUA. Era o secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal, em 1935, quando por iniciativa sua foi instituída a Universidade do Distrito Federal, historicamente a origem da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Um dos criadores da Universidade de Brasília e seu primeiro reitor, o professor Anísio Teixeira era membro do Conselho Federal de Educação quando apareceu morto, em circunstâncias misteriosas e até hoje não esclarecidas, no poço de um elevador, na Praia de Botafogo, em março de 1971.
Agora, com o depoimento da professora Marta Rossi, a Escola Regional de Meriti passa a fazer parte, oficialmente, da História de Duque de Caxias.
Os professores Edgar Sussekind de Mendonça e Anísio Teixeira (de pé) Martha Rossi, sua filha Silvana Rossi e Armanda Álvaro Alberto (sentadas) em flagrante feito durante uma sessão especial num dos cinemas do Rio de Janeiro